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News & MediaLatest News“Não me vou envergonhar por ser diferente”, Caster Semenya

15 de Fevereiro, 2024

Esta foi a frase dita por Caster Semenya. Muitos são os que certamente já ouviram falar da atleta sul-africana, de 33 anos.

Uns, por acompanharem de perto o atletismo e estarmos perante uma atleta de nível internacional, especializada em provas de média distância (800m a 3.000m), que foi duas vezes campeã olímpica na categoria feminina dos 800 metros, em Londres e no Rio de Janeiro.

Outros e ainda que não acompanhem o atletismo, por reconhecerem o seu nome pela questão jurídico-social em torno da atleta, publicamente discutida desde 2011, que é vista por muitos como um símbolo da luta pelos direitos das atletas femininas.

Para quem desconhece – e em traços muitos gerais –, Caster Semenya, atleta sul-africana, padece de distúrbios ao nível do desenvolvimento sexual (DDS), devidos a uma variação intersexo, resultando em características físicas muito particulares. A atleta não possui a maioria dos órgãos genitais femininos, como ovários; trompas e útero, mas sim testículos, localizados internamente, o que, consequentemente, faz com que apresente valores de testosterona acima dos valores de referência para mulheres sem DDS, pese embora apresente órgãos genitais femininos externos.

Em 2009, após Caster Semenya vencer a competição mundial dos 800m, em Berlim, começou-se a questionar se a atleta seria efetivamente uma “mulher”. Face às dúvidas, a World Athletics[1] iniciou uma investigação, tendo a atleta sul-africana, em consequência, ficado suspensa durante 11 meses das competições profissionais.

Em 2011, entrou em vigor o Regulamento de Hiperandrogenismo[2], que estabelece critérios de elegibilidade para as competições profissionais de atletismo feminino. Nos termos deste regulamento, só seriam elegíveis a participar em competições as atletas com níveis de testosterona abaixo dos 10nmol/l. Isto por se crer que os níveis de testosterona natural mais elevados permitem obter uma vantagem competitiva sobre as demais, o que viola a génese do desporto (tal como o doping, por exemplo). Ora, naquela época, como Caster Semenya estava abaixo desse parâmetro, foi-lhe permitido voltar à competição, tendo-se sagrado campeã olímpica em 2012 e 2016, conforme já referido.

Em 2018, entrou em vigor o regulamento de DSD, que acabando por seguir a racio do regulamento anterior, baixou o nível máximo de testosterona permitido para uma atleta feminina de 10nmol/l para apenas 5nmol/l.

Engane-se quem considera que este é um problema, apenas, de uma atleta. Tal como Caster Semenya, também outras atletas foram impedidas de competir em determinados momentos, como Christine Mboma, Beatrice Masilingi[[3]], Francine Niyonsaba e Margaret Wambui.

No entanto, é Caster Semenya que tem estado no centro da questão. Ao recusar sujeitar-se a tratamentos médicos para diminuir os seus níveis naturais de testosterona, alegando que os mesmos têm diversos efeitos secundários prejudiciais à sua saude, a atleta, juntamente com a Athletics South Africa, veio contestar os critérios de elegibilidade impostos pela World Athletics, junto do Court of Arbitration for Sport (CAS).

Em 2019, o CAS indeferiu a pretensão dos Requerentes por entender que as regras impostas pelo regulamento DSD, ainda que discriminatórias, constituíam um meio necessário, razoável e proporcional para preservar a competitividade desportiva, um dos princípios cruciais do desporto. A decisão ainda foi objeto de recurso para o Tribunal Federal Suíço, mas acabou por ser julgado improcedente.

Insatisfeita, Caster Semenya recorreu para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que veio a pronunciar-se em julho de 2023. Apesar de o TEDH não poder apreciar o regulamento em si, pode e deve certificar-se de que os direitos e garantias definidos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) são respeitados por todos os Estados Contratantes. E assim, em julho de 2023, o TEDH proferiu decisão, concluindo pela violação do art. 14.º da Convenção em conjugação com o art. 8.º[[4]], fundamentando que:

Tendo em conta aquilo que precede, o tribunal considera que, no contexto da arbitragem necessária, que privou a Requerente da possibilidade de recorrer aos tribunais judiciais, a única solução de que dispunha era um pedido ao CAS que, apesar de apresentar uma fundamentação muito pormenorizada, não aplicou as disposições da Convenção e deixou em aberto questões sérias quanto à validade dos Regulamentos DSD, em particular no que diz respeito: aos efeitos secundários do tratamento hormonal; à potencial incapacidade dos atletas permanecerem em conformidade com os Regulamentos DSD; e a falta de provas de que os atletas DSD 46 XY têm uma vantagem desportiva real nas corridas de 1.500 m e de 1 milha. Para além disso, a revisão efetuada pelo Supremo Tribunal Federal no recurso contra a decisão do CAS foi muito limitada, confinando-se à questão de saber se a decisão arbitral era compatível com a ordem pública, não conseguindo, no presente caso, responder às graves preocupações expressas pelo CAS de uma forma compatível com os requisitos do Artigo 14º da Convenção.

O Tribunal considera, pelas razões acima expostas (letras β a σт), que a Requerente não beneficiou de salvaguardas institucionais e processuais suficientes na Suíça, para lhe permitir que as suas queixas fossem examinadas de forma eficaz, especialmente porque dizem respeito a alegações fundamentadas e credíveis de discriminação, como resultado do seu nível aumentado de testosterona causado pela DSD. Daqui decorre, em especial no que se refere aos elevados riscos pessoais envolvidos para a Requerente – nomeadamente, a sua participação em competições de atletismo a nível internacional e, por sua vez, o exercício da sua profissão – que a Suíça ultrapassou a estreita margem de apreciação que lhe é concedida neste caso concreto, que diz respeito à discriminação em razão do sexo e das características sexuais que exige “razões de peso” como justificação (ver parágrafo 169 acima). Os elevados riscos do caso para a Requerente e a estreita margem de apreciação concedida ao Estado requerido deveriam ter conduzido a uma análise institucional e processual aprofundada, mas essa análise não foi disponibilizada à Requerente neste caso em concreto. Consequentemente, o tribunal não pode considerar que a aplicação dos regulamentos DSD ao caso da Requerente possa ser considerada uma medida objetiva e proporcional ao objetivo prosseguido.”[5].

Paralelamente, em 2023, o regulamento DSD foi novamente alterado[6], para a versão atual. No presente, qualquer atleta feminina, para poder participar em competições, necessita preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:

– Ser juridicamente reconhecida como mulher ou intersexo;

– Apresentar níveis de testosterona abaixo dos 2,5nmol/L, durante um período contínuo mínimo de 24 meses; e

– Manter esses níveis de testosterona de forma contínua, independentemente de estar ou não a competir, sob pena de perder a elegibilidade para competir na categoria feminina.

Apesar desta decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, não há perspetivas de que a World Athletic venha a alterar os critérios de elegibilidade das atletas femininas previstos no regulamento DSD. Esta entidade continua a defender, expressamente, que o respetivo regulamento é um meio necessário, razoável e proporcional, apto a proteger a justiça e equidade desportiva, na categoria feminina[7].

Todavia, tal como referido pelo TEDH, apesar do entendimento da World Athletic e do próprio CAS, não resulta consensual na comunidade médica/científica que a testosterona seja o principal elemento de desempenho de uma atleta. Existe uma panóplia de outras hormonas e enzimas presentes no organismo, que podem influenciar o seu rendimento, como sejam, por exemplo, o cortisol, o estrogénio e a enzima 5-alfa-redutase.

Não é sequer possível quantificar, com certeza, o nível de vantagem em atletas que têm níveis de testosterona mais elevados. Aliás, uma demonstração dessa incerteza é o teor do próprio regulamento já ter previsto, num espaço de cinco anos, que o critério de elegibilidade de uma atleta seriam níveis de testosterona abaixo de 10nmol/L, posteriormente, abaixo de 5nmol/L e, atualmente, abaixo de 2,5nmol/L.

Suscitando-se, ainda, outras questões como por que razão os níveis naturais de testosterona de uma atleta – ainda que “anómalos”, devido a um distúrbio de desenvolvimento sexual – são objeto de limitações regulamentares, mas o mesmo não suceda relativamente a outros características de atletas, como, por exemplo, uma hipertrofia e longitude dos membros superiores que confere a um atleta uma maior apetência e quiçá vantagem para a natação, ou uma  estatura mais elevada que confere a um atleta uma maior apetência e quiçá vantagem para o basquetebol?

Não serão as condições intrínsecas de cada atleta, sejam elas de natureza fisionómica ou neuro-hormonal, na realidade, os seus atributos naturais que lhes permitem destacar-se na modalidade em que se inserem e, consequentemente, alcançar melhores resultados no estatuto de atletas profissionais de alta competição, face aos restantes?

O que não deixa de ser curioso é que, cientificamente, a discrepância de testosterona entre atletas é uma circunstância que sucede quer na categoria feminina, quer na masculina. No entanto, a categoria masculina não tem qualquer regulamento de elegibilidade dos atletas, por referência aos níveis séricos de testosterona.

O que nos pode levar a questionar se o intuito da World Athletics, com o regulamento de elegibilidade, não será apenas acautelar a justiça competitiva dos lugares de pódio, que se pressupõe serem afetados no caso das atletas femininas com maiores níveis de testosterona que as demais.

Sendo certo que a concorrência desportiva não se pode apenas aferir quando estamos a falar dos lugares de pódio, mas em todas e quaisquer circunstâncias. Não existindo ressalva quando estamos a falar, por exemplo, de um atleta com níveis mais baixos de testosterona que os demais, seja ele de categoria feminina ou masculina.

Além disso, para levarmos em consideração todos os fatores que potenciam a diferenças dos atletas entre si, além das características fisionómicas ou neuro-hormonais, teríamos também de olhar para as condições climatéricas, culturais e, sobretudo, financeiras, onde é inevitável que atletas com melhores condições consigam potenciar melhor o seu rendimento.

A verdade é que o avanço da ciência, nomeadamente no estudo genético, bioquímico e fisiológico dos atletas, proporciona, nos dias de hoje, um conjunto de questões no mundo do atletismo – e não só – que obrigam a repensar as categorizações da modalidade. Porém, deve ser também na ciência que se devem encontrar as respostas a essas mesmas questões.

Por exemplo, até que ponto seria exequível a adoção do passaporte biológico[8], utilizado nos testes antidoping, como base para as categorizações da modalidade?! A ideia seria juntar atletas cuja identidade biológica fosse a mais similar possível entre si, ou que as diferenças entre si não fossem potenciadoras de desigualdade competitiva. O que, possivelmente, acautelaria também a situação dos atletas transgéneros, cuja categoria feminina enfrenta regras de elegibilidade – à semelhança das mulheres com DDS –, por oposição aos atletas trans, de categoria masculina, que não enfrentam quaisquer estipulação de critérios[9]. Sendo esta uma realidade que surgirá no futuro, cada vez com maior frequência.

As respostas não são fáceis, nem isentas de polémica.

Em todo o caso, se dirá que, qualquer solução, terá sempre de passar por salvaguardar os direitos das atletas, como seja a sua integridade física e moral, a sua identidade de género e a reserva da vida privada.

Uma coisa é certa, esta luta é seguramente a corrida mais importante da vida de Caster Semenya e de todas as atletas que saem dos padrões definido como “comuns”, pela World Athletics.

 

por Ricardo Cardoso e Soraia Varela Almeida

 


[1] Associação Internacional de Federações de Atletismo.

[2] Regulations Governing Eligibility of Females with Hyperandrogenism to Compete in Women’s Competition.

[3] Ambas as atletas foram impedidas de participar nos jogos Olímpicos de Tóquio em 2020, por apresentarem níveis elevados de testosterona.  

[4] Art. 8.º “Direito ao respeito pela vida privada e familiar” e art. 14.º “Proibição de discriminação”, cujo teor normativo encontra-se disponível em European Convention on Human Rights (coe.int).

[5] The Court considers, for the reasons set out above (letters β to στ), that the applicant was not afforded sufficient institutional and procedural safeguards in Switzerland to allow her to have her complaints examined effectively, especially since they concerned substantiated and credible claims of discrimination as a result of her increased testosterone level caused by DSD. It follows, particularly with regard to the high personal stakes involved for the applicant – namely, participating in athletics competitions at international level, and therefore practising her profession – that Switzerland overstepped the narrow margin of appreciation afforded to it in the present case, which concerned discrimination on grounds of sex and sex characteristics requiring “very weighty reasons” by way of justification (see paragraph 169 above). The high stakes of the case for the applicant and the narrow margin of appreciation afforded to the respondent State should have led to an in-depth institutional and procedural review, but such a review was not available to the applicant in the present case. As a result, the Court is unable to find that the application of the DSD Regulations to the applicant’s case could be considered a measure that was objective and proportionate to the aim pursued.” Decisão disponível na sua integralidade em SEMENYA v. SWITZERLAND (coe.int).

[6] Eligibility Regulations for the Female Classification (Athlete with Differences of Sexual Development), disponível em www.worldathletics.org.

[7] Veja-se a pronúncia da World Athletics à decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Humanos, no presente caso, em World Athletics responde a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos | COMUNICADOS DE IMPRENSA | Mundial de Atletismo.

[8] Passaporte biológico: constitui a identidade biológica de um atleta, ou seja, permite traçar um perfil de valores mínimos e máximas de um atleta, no contexto hematológico, endocrinológico e esteroidal.

[9] Elegibility Regulations for Transgender Athletes, disponível em C3.5 – Eligibility Regulations Transgender Athlete (1).pdf.

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