Resumo: O empregador pode exigir um comprovativo de imunidade para efeitos de contratação?
A resposta exige razoabilidade e impõe que se saiba separar o trigo do joio.
Com o anúncio das vacinas que vão lentamente chegando ao mercado, surgiu uma nova esperança. No entanto, podendo ser as vacinas uma solução, nem todos as querem tomar.
“No Jab, No Job” [i.e. “sem vacina, sem trabalho”]. É com esta premissa que se discute um pouco por todo o Mundo (com especial destaque no Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Chile e Israel) a possibilidade de, no futuro, as empresas exigirem comprovativos de imunidade para efeitos de contratação.
A questão, pois, que aqui se coloca é esta: e em Portugal? As empresas podem, sem mais, decidir exigir um comprovativo de imunidade para efeitos de contratação? O presente artigo pretende tratar esta e outras questões sobre medidas de salvo-conduto imunitário.
Começando pela clarificação, o que são afinal os certificados de imunidade? Trata-se de documentos que atestam que uma pessoa é imune a uma doença infeciosa, neste caso à covid-19 – ou seja, que não fica doente de novo se voltar a estar em contacto com o vírus, SARS-CoV-2.
Posto o enquadramento, sabemos que um dos deveres basilares do empregador é o de zelar pela proteção da segurança e saúde dos seus trabalhadores e prevenir riscos laborais.
Cabe ao empregador adotar as medidas necessárias para garantir o cumprimento dessas regras, tendo em conta, além da legislação aplicável, as recomendações das autoridades de saúde relativamente à prevenção da covid-19, nomeadamente assegurar medidas de implementação do teletrabalho, o fornecimento de equipamento de proteção individual, a manutenção das distâncias de segurança e a realização de desinfeção e limpezas periódicas das instalações.
Noutro prisma, o empregador não pode, por regra, para efeitos de admissão ou permanência no emprego, exigir ao trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza, para comprovação das suas condições físicas ou psíquicas. O que significa, por outras palavras, que nesta matéria o princípio geral é o da irrelevância das matérias da esfera privada do trabalhador para a dinâmica do contrato do trabalho.
Contudo, a legislação laboral admite que esta proibição geral seja temperada através das seguintes exceções:
- Quando tenham por finalidade a proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros (v.g. clientes, visitantes, fornecedores);
- Quando particulares exigências inerentes à atividade o justifiquem (v.g. profissionais de saúde).
Em qualquer caso, deverá ser sempre fornecida aos trabalhadores justificação escrita. Ademais, os comprovativos devem ser analisados por médico do trabalho, o qual apenas informa o empregador se o trabalhador está (ou não) apto para desempenhar a atividade.
Perante o exposto, pergunta-se: e quanto à sua admissibilidade do passaporte de imunidade? Eis-nos ora perante a essência da magna questão.
Entendemos, por ora, tratar-se de uma solução juslaboral pouco pacífica e, por isso, assente em sérias contingências. E isto porquê? Entre outras, explicamos abaixo algumas das razões para as nossas reservas:
- O comprovativo de imunidade deve servir para facilitar, de uma forma segura, a livre circulação e não pode servir para efeitos de discriminação “negativa”.
- Ou seja, por outras palavras, entendemos que existe o elevado risco de tal medida [i.e. passaporte de imunidade] em contexto laboral ser considerada discricionária e discriminatória, uma vez que, como bem sabemos, não existem, à presente data, doses de vacinas para todos os que pretendessem a sua toma.
- Alguns trabalhadores, por exemplo, podem ter uma razão médica para não pretenderem a toma da vacina, outros podem ter preocupações religiosas, éticas, de saúde ou de segurança:
- O veganismo, por exemplo, já foi considerado uma crença que poderá merecer proteção. Se uma vacina contém derivados de animais, pode um empregador exigir que o trabalhador contrarie as suas crenças ou religião e tome a vacina para poder aceitar um novo emprego (ou até para o manter…)?
- E uma trabalhadora que seja aconselhada pelo seu médico a não ser vacinada devido a problemas de saúde, gravidez ou que esteja a amamentar, faz sentido ser prejudicada num processo de recrutamento?
- No que respeita aos casos de imunidade por já terem contraído o vírus, importa chamar à atenção para o seguinte: este género de solução poderia ditar que pessoas “desesperadas”, no desemprego, com necessidade de arranjar trabalho, se infetassem propositadamente para ter acesso a esta ‘via verde’ e, consequentemente, obter o tão desejado posto de trabalho.
- E mais, poderia, em última instância, incrementar outras práticas, tais como: dar ‘benefícios’ a quem tivesse contraído o vírus propositadamente, motivando que pessoas saudáveis se misturassem com infetadas, e, assim, cumulativamente, conseguirem obter aquela oportunidade de emprego tão desejada (diríamos, portanto, uma espécie de falso “win win”).
- Por último, consideramos que há ainda várias questões por responder, como por exemplo, qual o tipo de imunidade proporcionada pelas vacinas ou por já se ter contraído o vírus. Ou seja, significa que estas pessoas estão seguras, mas podem transmitir o vírus?
Não obstante o exposto, após a existência de doses de vacinas para toda a população, poderá existir uma interpretação distinta. Isto é, admitir-se como legítimo que o empregador coloque como condição à contratação um ‘passaporte de imunidade’ com a finalidade de prevenção de surtos de contágio, tendo assim em vista a proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros.
Por outro lado, no que respeita às situações em que particulares exigências inerentes à atividade o justifiquem (v.g. domínios da prestação dos cuidados de saúde), existe uma ponderação a fazer e entendemos que deverá prevalecer o direito à saúde, o que não significa, de modo algum, que a proteção de dados não tenha que ser escrupulosamente cumprida.
Deste modo, em função da necessidade de proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros (e também porque a maioria dos profissionais de saúde já se encontram vacinados), entendemos admissível que tal prática [i.e. passaporte de imunidade] se possa verificar para estes casos concretos desde que cumpridos os pressupostos legais já devidamente identificados e tratados.
por Ricardo Lourenço da Silva, Área de Prática – Direito do Trabalho e da Segurança Social