Nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 98/2009 (LAT), de 4 de setembro, que trata do Regime Jurídico da Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em Portugal, considera-se «acidente de trabalho» aquele que ocorra no local e no tempo de trabalho, e que provoque, direta ou indiretamente, uma lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de trabalho ou de ganho, ou a morte.
Ademais, o conceito de «acidente de trabalho» é alargado pelo artigo 9.º, n.º 1, al. a) da LAT, abrangendo também os acidentes que ocorrem no trajeto habitual entre a residência do trabalhador e o seu local de trabalho ou de regresso deste, desde que esse trajeto se realize nos percursos normalmente utilizados e dentro do tempo que normalmente seria gasto.
Contudo, a lei exclui desta proteção os casos em que o acidente ocorra na sequência de desvios ou interrupções ao trajeto normal, sempre que esses desvios não se justifiquem pela satisfação de necessidades atendíveis, nem resultem de motivos de força maior ou por casos fortuitos.
A Desconsideração do Nexo Causal dos acidentes In Itenere:
A principal controvérsia neste contexto reside na determinação do nexo causal entre o acidente ocorrido e a situação laboral.
Apesar de as seguradoras alegarem, frequentemente, a inexistência desse nexo para afastar a sua responsabilidade, os tribunais têm vindo a adotar uma abordagem mais flexível, considerando a razoabilidade do desvio e a sua conexão com necessidades atendíveis do trabalhador.
A análise sobre se as interrupções ou desvios no trajeto são atendíveis deve basear-se em critérios de razoabilidade e adequação social, considerando a evolução dos costumes.
Nesse contexto, incluem-se as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador, não exigindo a lei que essas necessidades sejam urgentes ou absolutamente imprescindíveis.
Vejamos a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2025, proc. n.º 22380/22.7T8LSB.L1. S1, [1] que considerou como acidente de trabalho a queda num autocarro sofrida por uma trabalhadora que, embora habitualmente regressasse a casa utilizando dois autocarros, optou nesse dia por realizar a pé o percurso intermédio entre ambos.
A trabalhadora seguiu o trajeto habitual do primeiro autocarro até ao ponto onde normalmente apanharia o segundo, tendo, durante esse percurso pedonal, feito pequenas paragens para comprar ingredientes para o jantar, falar ao telemóvel e visitar uma loja e comprar uma toalha de mãos.
Apesar destas interrupções, entendeu o Tribunal que não se verificou uma descaracterização do acidente como de trabalho, não sendo afastado o nexo causal do mesmo.
Isto porque os desvios realizados pela sinistrada ocorreram ao longo do trajeto habitual e resultaram de necessidades pessoais e familiares atendíveis com os padrões de vida comuns.
Acresce que, no momento do acidente, a sinistrada já tinha retomado o percurso habitual, encontrando-se novamente a circular dentro do autocarro, ou seja, no âmbito do risco inerente a esta deslocação.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-12-2018, processo n.º 4899/16.0T8LRS.L1-4 [2], no qual foi considerado como acidente de trabalho in itinere a circunstância em que o sinistrado interrompeu e se desviou, por um curto período, do trajeto de regresso a casa após o trabalho, com o objetivo de comprar uma camisola de um clube de futebol para oferecer ao afilhado.
Adicionalmente, e a título de exemplo, considerou o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 03-02-2010, no processo n.º 428/06.2TTLSB.L1, que deve ser qualificado como acidente de trabalho in itinere, a circunstância de um médico, profissional liberal, que foi atingido por um chapéu de sol de 20 kg enquanto se encontrava numa esplanada, em reunião com um colega.
Os acidentes em teletrabalho:
Cumpre abordar, ainda, de forma sucinta, o enquadramento jurídico dos acidentes de trabalho ocorridos no âmbito do teletrabalho.
Nos termos do art. 8.º, n.º 2, a. c) da LAT, no caso de teletrabalho, considera-se local de trabalho aquele que constar do respetivo acordo de teletrabalho, devendo esse local estar igualmente indicado na apólice de seguro contratada, e acordado com a entidade empregadora.
Coloca-se, assim, a dificuldade de estabelecer o nexo causal entre o acidente e a atividade profissional, sobretudo quando há possibilidade de se tratar de um evento de natureza doméstica.
Embora os tribunais portugueses ainda não se tenham pronunciado sobre esta matéria, o 2.º Senado do Tribunal Federal Social da Alemanha (Bundessozialgericht) [3], em decisão proferida a 8 de dezembro de 2021, reconheceu como acidente de trabalho a situação de um trabalhador em regime de teletrabalho que, ao deslocar-se do seu quarto para o piso inferior da sua casa, onde se situava o seu escritório – ou seja, na deslocação para o local de trabalho- escorregou e sofreu uma fratura vertebral.
Assim, para que um acidente possa ser qualificado como de trabalho, mesmo em regime de teletrabalho, é necessário que ocorra no exercício da atividade laboral ou por causa dela, sendo indispensável a verificação de um nexo funcional entre o acidente e a relação laboral.
Considerações Finais:
A jurisprudência portuguesa tem vindo a adotar uma interpretação mais flexível, e progressivamente mais aberta, do conceito de acidente de trabalho in itinere, reconhecendo que certos desvios no percurso casa-trabalho, quando motivados por necessidades razoáveis (como deixar um filho na escola ou abastecer o carro), não descaracterizam automaticamente o acidente enquanto de trabalho.
Reconhecendo, assim, que a vida do trabalhador não se resume a um percurso rígido e invariável entre casa e trabalho.
Esta evolução reflete uma maior sensibilidade às exigências da vida quotidiana, procurando equilibrar a proteção do trabalhador, e o reconhecimento das necessidades concretas da vida quotidiana, com os critérios legais.
Assim, cada situação deve ser avaliada com bom senso, sendo que o desvio do trajeto habitual para satisfazer uma necessidade legítima do trabalhador deve ser avaliado com base num critério de adequação social, não englobando as situações que permitam ou implicam um “corte” na conexão com a relação laboral.
por Rui de Amorim Mesquita e Ana Rita Villaverde, Área de Prática – Seguros e Responsabilidade Civil
[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2025, relator Mário Belo Morgado proc. n.º 22380/22.7T8LSB.L1. S1, disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/df82d0c0f04563f080258c6100337574?OpenDocument
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-12-2018, relator Sérgio Almeida, processo n.º 4899/16.0T8LRS.L1-4, disponível em: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
[3] Acidente de trabalho no regime do teletrabalho, Teresa Coelho Moreira e Inês Dias, disponível em: coelho_dias_noticias_cielo_n1_2023-1.pdf