i. A Diretiva de Proteção dos Denunciantes
A Diretiva (EU) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciem violações do Direito da União (“Diretiva”), que entrou em vigor no dia 16 de dezembro de 2019, deverá ser transposta para os ordenamentos jurídicos internos dos Estados-Membros até dia 17 de dezembro de 2021.
A Diretiva surge na sequência de vários casos mediáticos, como o Luanda Leaks, o Futeball Leaks e o Panama Papers, que trouxeram para a discussão pública a importância das denúncias de ilícitos no combate à criminalidade, assim como os limites à valoração da prova assim obtida e a necessidade de proteção dos denunciantes.
Por reconhecer que as denúncias facilitam a descoberta e a investigação dos crimes cometidos no seio das empresas, a União Europeia pretende, com esta Diretiva, implementar regras comuns que assegurem a proteção eficaz de pessoas que, no contexto profissional, obtenham, de forma licita, conhecimento de infrações e que as pretendam denunciar.
Para o efeito, as empresas de determinados setores serão obrigadas, entre o mais, a criar canais internos seguros para apresentação de denúncias por parte dos seus colaboradores e a implementar regras internas que assegurem o cabal tratamento dessas denúncias.
ii. Âmbito de aplicação
A “proteção dos denunciantes” aplica-se a quem, no contexto funcional, tenha obtido informação sobre a prática de ilícitos que visem denunciar. Têm, assim, direito à proteção, os trabalhadores, incluindo funcionários públicos; titulares de participações sociais e pessoas pertencentes a órgãos de administração, de gestão ou de supervisão de empresas, entre outros.
Por conseguinte, estas regras aplicam-se apenas a pessoas que obtenham conhecimento da prática de crimes no exercício das suas funções. Não prevê, pelo contrário, a proteção de pessoas “estranhas” à organização e de todos aqueles que obtenham informação de forma ilegal e/ou através da prática de outros crimes.
Goza de proteção quem denuncie ilícitos praticados em diversas áreas, entre as quais:
- Contratação pública;
- Serviços, produtos e mercados financeiros e prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo;
- Segurança dos transportes;
- Proteção do ambiente;
- Proteção contra as radiações e segurança nuclear;
- Segurança dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais, saúde e bem-estar animal;
- Saúde pública;
- Defesa do consumidor;
- Proteção da privacidade e dos dados pessoais e segurança da rede e dos sistemas de informação;
- Violações lesivas dos interesses financeiros da União e violações relacionadas com o mercado interno europeu, inclusive violações das regras da União de concorrência e de auxílios estatais.
iii. Canais de Denúncia: internos e externos
De acordo com a Diretiva, as entidades do setor público e privado serão obrigadas a implementar canais e procedimentos de denúncia interna, consoante a respetiva dimensão e o resultado da avaliação de risco.
Para o efeito, devem ser observados vários procedimentos, entre os quais:
- A criação de canais para receção de denúncias;
- O envio de avisos de receção da denúncia;
- A designação de uma pessoa competente para dar seguimento às denúncias;
- O tratamento diligente de denúncias anónimas;
- O retorno de informação em prazo razoável;
- A prestação de informações claras e facilmente acessíveis sobre os procedimentos para efetuar denúncias externas às autoridades competentes.
Quanto às denúncias externas, serão designadas autoridades competentes para receber, dar feedback e fazer o follow up das denúncias externas, as quais devem dispor de canais de reporte independentes e autónomos.
Qualquer denunciante pode optar por utilizar canais internos de denúncia ou recorrer diretamente à apresentação de uma denúncia externa perante uma autoridade competente.
É por isso importante que as empresas priorizem a implementação destes procedimentos, criando atempadamente mecanismos eficazes para assegurar a apresentação e o tratamento de denúncias internas por parte dos colaboradores, de molde a minimizar o impacto negativo na gestão do “risco reputacional” que a apresentação de denúncias externas pode assumir.
iv. Proibição de retaliação
Devem também ser adotadas medidas para impedir qualquer forma de retaliação contra os denunciantes. Entre as formas de retaliação proibidas, a Diretiva destaca a suspensão, os despedimentos ou medidas equivalentes; as despromoções ou recusas de promoção, entre outras.
v. Sanções
Para assegurar a proteção dos denunciantes e incentivar à implementação efetiva de canais e procedimentos de denúncia, os Estados-Membros devem também prever sanções, proporcionais e dissuasivas, aplicáveis a pessoas singulares ou coletivas que adotem as seguintes condutas:
- Impeçam ou tentem impedir a apresentação da denúncia;
- Pratiquem atos de retaliação contra o denunciante;
- Instaurem processos vexatórios contra os denunciantes;
- Violem o dever de manutenção da confidencialidade da identidade dos denunciantes.
vi. Implementação da Diretiva em Portugal e o combate à corrupção
Os Estados Membros devem transpor a Diretiva para os seus ordenamentos jurídicos internos até dia 17 de dezembro de 2021.
De acordo com a informação oficial divulgada, embora nenhum dos Estados-Membros tenha transposto, até à presente data, a Diretiva, vinte e um dos vinte e sete Estados-Membros, entre os quais Portugal, já deram início à sua transposição[1].
Em Portugal, a referência à Diretiva integrou a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024 (“Estratégia”), aprovada pelo Conselho de Ministros em 3 de setembro de 2020.
A Estratégia identifica as prioridades para reduzir o fenómeno da corrupção em Portugal, entre as quais, i) comprometer o setor privado na prevenção, deteção e repressão da corrupção e ii) reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas.
O Governo reconhece, assim, que o papel das empresas na prevenção da corrupção é essencial e que ao imporem elevados padrões comportamentais aos seus colaboradores, as empresas combatem e desincentivam o aparecimento de corruptores.
Nesse domínio, a Estratégia prevê, desde logo, a aprovação de um Regime Geral de Prevenção da Corrupção (RGPC) que irá determinar a necessidade de implementação pelas empresas de instrumentos como i) os planos de prevenção ou gestão de riscos, ii) os códigos de ética e de conduta, iii) os canais de denúncia e iv) a designação de um responsável pelo cumprimento normativo.
A Estratégia atribui uma enorme importância à adoção e à implementação de programas de cumprimento normativo por parte das empresas para combater a corrupção. Para que tais programas venham a constituir ferramentas efetivas e adequadas a prevenir a corrupção, prevê-se a sua obrigatoriedade nas empresas de grande e média dimensão, assim como a previsão de aplicação de coimas e de sanções acessórias para punir o incumprimento por parte das empresas.
A propósito da importância dos canais de denúncia, a Estratégia veio acolher a preocupação da União Europeia e reconhece que a proteção dos denunciantes é uma prioridade, tendo em consideração que os canais de denúncia constituem instrumentos da maior relevância na prevenção da corrupção.
vii. Impacto das medidas na responsabilidade penal e contraordenacional
De acordo com a Estratégia, a adoção de programas de cumprimento normativo por parte das empresas deverá ter um impacto efetivo ao nível da responsabilidade penal e contraordenacional das pessoas coletivas e entidades equiparadas, à semelhança do que sucede em outros países.
Prevê-se que a relevância processual penal dos programas de cumprimento normativo se repercuta positivamente i) nas exigências processuais de natureza cautelar (com previsão de novas medidas de coação aplicáveis às pessoas coletivas); ii) em soluções processuais consensuais, como a suspensão provisória do processo com a injunção de a pessoa coletiva adotar um programa de cumprimento normativo, e no iii) aproveitamento da prova produzida no âmbito das investigações internas.
Resta-nos, assim, aguardar pela conclusão da transposição da Diretiva em Portugal e pela aprovação de legislação que concretize os objetivos de combate à corrupção previstos na Estratégia – objetivos que se espera não terem sido afetados pela pandemia Covid 19.
É importante, porém, que as empresas se consciencializem do impacto que estas novas regras terão nas organizações e que, desde já, se preparem para dar cumprimento às regras que serão adotadas num futuro próximo em Portugal, tanto no domínio da proteção dos denunciantes como na prevenção e combate à corrupção.
por Alexandra Mota Gomes e Beatriz Eusébio da Costa, Área de Prática – Criminal, Contraordenacional e Compliance.
[1] Informação disponível em http://euwhistleblowingmeter.polimeter.org/.