Um dos temas “quentes” da atualidade da privacidade, prende-se com a utilização da tecnologia biométrica de reconhecimento facial para controlo de adeptos à entrada dos estádios de futebol.
Em causa está a privacidade de todos os “tiffosi” versus a segurança anti “hooligans”.
Até que ponto se justificará, na ponderação dos direitos, interesses e valores “em jogo”, a utilização de tecnologia de Inteligência Artificial / reconhecimento facial para vedar o acesso de um determinado adepto a um recinto desportivo?
Trata-se de uma medida altamente invasiva da privacidade, um pouco a lembrar “1984” de George Orwell, que afeta diretamente todos os adeptos de eventos desportivos em recintos fechados, e que suscita sérias dúvidas quanto à sua legalidade e proporcionalidade e até questões de ordem ética. Será que os fins justificam os meios?
Discute-se sobre a legitimidade de quem vai decidir quais os rostos dos adeptos que entram ou não num estádio. Quais os limites éticos do algoritmo? E com base em que critérios legais – no comportamento anterior do adepto em recintos desportivos, no seu registo criminal ou da análise dos seus posts nas redes sociais?
Com que legitimidade serão criados perfis e listas ou cadastros de adeptos problemáticos? E se o algoritmo se enganar e vedar injustamente o acesso de um adepto exemplar?
Será que, em breve, vamos ver adeptos com make up anti-Big Brother para enganar o algoritmo, como assistimos nas recentes manifestações em Hong Kong?
A questão merece atenção e reflexão sobre estas medidas que ganham terreno no âmbito da realização de eventos desportivos.
A controvérsia aumenta de tom na União Europeia na véspera da aprovação do White Paper “sobre Inteligência Artificial” da nova Comissão Europeia, que pretende banir por 3/5 anos esta tecnologia estratégica.
A existência de sistemas de CCTV por ocasião de grandes eventos desportivos como a final da UEFA Champions League no Estádio Nacional de Gales é justificada pela prevenção da violência, numa ótica em que, alegadamente, estas ferramentas são altamente eficazes na prevenção de episódios violentos. Com efeito tais ferramentas permitem identificar rapidamente os adeptos com antecedentes criminais, podendo a partir daí as autoridades policiais tomar as medidas necessárias.
Em 2019, em Baku, Azerbaijão, os adeptos foram já confrontados com este sistema inovador na final da UEFA – Liga Europa. Previsivelmente, o mesmo sistema será utilizado em 2022 no Campeonato do Mundo da FIFA no Qatar.
Os Clubes de Futebol – como o Manchester City no Etihad Stadium -, ponderam atualmente a utilização de sistemas de reconhecimento facial para controlar a entrada de adeptos que mostram “apenas” a sua cara para acederem rapidamente ao recinto desportivo, evitando congestionamentos desnecessários.
Que questões importa resolver primeiro?
No primeiro caso, em que são instalados sistemas de CCTV como mecanismo preventivo de situações de violência, tanto se questiona a sua eficácia como se levantam questões de natureza até filosófica, qual “Minority Report”.
Numa ótica em que o objetivo é detetar os “maus”, para o caso de algum incidente violento acontecer, pode afirmar-se que existe um rótulo de pré-crime, onde o ilícito penal não chega tão pouco a acontecer, marcando indivíduos à partida, desconsiderando o seu eventual historial de reinserção e atropelando grosseiramente princípios basilares do Estado de Direito. Um cartão vermelho antes da própria falta.
Questiona-se, ainda, onde está a prevenção, numa altura em que, na esteira dos princípios subjacentes à Convenção de St. Denis, de hospitalidade e serviço para com os frequentadores dos recintos desportivos, encontramos um forte constrangimento a estas diretrizes, através do recurso a um rótulo (“tag”) altamente pejorativo, aplicável aos espectadores de espetáculos desportivos.
Por último, toda a construção em tese, destes mecanismos fiscalizadores e de natureza tendencialmente repressiva, ainda que apresentados sob vestes securitárias e em prol do próprio espetador, comporta preocupações acrescidas quando são potencialmente aplicáveis em locais em que se vivem regimes autoritários com scoring dos cidadãos.
É, no mínimo, preocupante, considerar que este tipo de tecnologia pode ser aplicado de forma totalmente arbitrária, sem o necessário debate da sociedade civil ou supervisão independente que assegure a legalidade e as garantias aos cidadãos de não discriminação, e mais que tudo, dos seus direitos fundamentais à privacidade e liberdade.
Estamos perante questões que são a pedra angular de qualquer sociedade democrática: privacidade, liberdade de expressão e não discriminação. Mais ainda quando as “cobaias” são os que fazem bater o coração do Desporto.
TIFFOSI: Big Brother is watching you!