Como tudo começou
No dia 15 de junho de 2018, o Parlamento português aprovou a legalização do uso de produtos feitos à base de canábis (Cannabis sativa) para fins medicinais, cujo quadro legal ficou definido pela Lei n.º 33/2018, de 18 de julho.
Seis meses depois, através do Decreto-Lei n.º 8/2019, de 15 de janeiro, o Governo regulamentou a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais.
Autorização para o exercício de atividades
Nos termos deste quadro legal, fica dependente de autorização do INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P. (INFARMED, I. P.), o exercício das atividades de cultivo, fabrico, comércio por grosso, importação, exportação e trânsito de medicamentos, preparações ou substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais.
Mais recentemente, por via da Portaria n.º 83/2021, de 15 de abril, foram definidos os requisitos e procedimentos relativos à concessão de autorizações para o exercício de atividades relacionadas com o cultivo, fabrico, comércio por grosso, transporte, circulação, importação e exportação de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis, o que pode ser visto como um sinal de aposta no desenvolvimento desta área.
Atualmente, existem 11 empresas com autorização para o exercício da atividade de cultivo, no entanto, pelo contrário, a introdução e colocação no mercado de medicamentos, preparações ou substâncias à base daquela não tem acompanhado o mesmo ritmo.
Introdução e colocação no mercado
Quando estejam em causa medicamentos, a introdução no mercado de medicamentos à base da planta da canábis para fins medicinais está sujeita a uma autorização de introdução no mercado (AIM), pelo INFARMED, I.P., prevista e regulada no Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, na sua redação atual.
Já quando se trate de preparações ou substâncias, é necessário obter autorização de colocação no mercado (ACM), também do INFARMED, I.P..
Em qualquer dos casos, tal como resulta do n.º 1 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 8/2019, de 15 de janeiro, a prescrição de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais apenas é admitida nos casos em que se determine que os tratamentos convencionais com medicamentos autorizados não estão a produzir os efeitos esperados ou provocam efeitos adversos relevantes. Assim, dita o n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 33/2018, que 18 de julho, que as indicações terapêuticas consideradas apropriadas para os medicamentos, preparações e substâncias à base da planta canábis destinados a uso humano são aprovados pelo INFARMED.
Se, relativamente aos medicamentos, essa aprovação é concedida casuisticamente, no contexto do processo de AIM, no que se refere às preparações e substâncias, a lista das indicações terapêuticas consideradas apropriadas é aprovada por deliberação do INFARMED, encontrando-se em vigor, nos termos da Deliberação n.º 11/CD/2019, de 31 de janeiro de 2019, a seguinte:
a) Espasticidade associada à esclerose múltipla ou lesões da espinal medula;
b) Náuseas, vómitos (resultante da quimioterapia, radioterapia e terapia combinada de HIV e medicação para hepatite C);
c) Estimulação do apetite nos cuidados paliativos de doentes sujeitos a tratamentos oncológicos ou com SIDA;
d) Dor crónica (associada a doenças oncológicas ou ao sistema nervoso, como por exemplo na dor neuropática causada por lesão de um nervo, dor do membro fantasma, nevralgia do trigémio ou após herpes zoster);
e) Síndrome de Gilles de la Tourette;
f) Epilepsia e tratamento de transtornos convulsivos graves na infância, tais como as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut;
g) Glaucoma resistente à terapêutica.
O Observatório Português de Canábis Medicinal (OPCM) comunicou recentemente que vai fazer uma proposta de alteração da lista de indicações terapêuticas em vigor, pelo que este elenco poderá vir a sofrer alterações.
Onde estamos
Seja por excesso de rigor por parte do INFARMED, I.P., seja por falta de qualidade dos dossiers apresentados pelos interessados, três anos decorridos desde a legalização do uso de produtos feitos à base de canábis para fins medicinais, foi atribuída apenas uma ACM de uma substância à base da planta da canábis para fins medicinais, emitida pelo INFARMED, I.P. em 1 de fevereiro de 2021 (o primeiro e único medicamento à base da planta da canábis para fins medicinais obteve o respetivo AIM em 2012).
Assim, a partir de abril esta substância passou a ser comercializada nas farmácias portuguesas, mediante receita médica, encontrando-se indicada para pacientes com dor crónica (associada a doenças oncológicas ou ao sistema nervoso), espasticidade associada à esclerose múltipla ou a lesões da espinal medula, náuseas e vómitos (resultantes da quimioterapia, radioterapia e terapia combinada de HIV e medicação para a hepatite C) e estimulação do apetite nos cuidados paliativos de doentes sujeitos a tratamentos oncológicos ou com SIDA.
Esta substância, que não se trata de um medicamento, mas de um produto de saúde preparado para inalar com um vaporizador, utiliza dois componentes da canábis, o THC, psicoativo e o CBD.
A compra desta substância não é comparticipada, o que o OPCM critica, tendo comunicado que vai solicitar ao INFARMED, I.P. a respetiva comparticipação.
A comercialização da primeira substância à base da planta da canábis para fins medicinais autorizada pelo INFARMED, I.P. nas farmácias portuguesas, ainda que curto, constitui um passo importante na efetiva aplicação do quadro legal vigente e uma esperança para os doentes que a legalização almejava proteger, mas que aguardam há quase três anos por aceder a essas terapêuticas.
por Jane Kirkby