De acordo com o relatório sobre Emprego e Formação, disponibilizado pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho de Solidariedade e Segurança Social, ocorreram cerca de 196 mil acidentes de trabalho em 2019.
Considerando a evolução da sinistralidade laboral nos últimos 5 anos, constata-se uma certa tendência de decréscimo no número de acidentes, embora o maior número de infortúnios laborais se continue a concentrar no setor da construção civil, logo seguido da indústria transformadora.
A Lei 98/2009 regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.
Foi proferido o Acórdão nº 380/2024, no âmbito do processo nº 1164/2022, da autoria da Senhora Venerandíssima Relatora, Exma. Senhora Conselheira Joana Fernandes Costa, em Plenário, no Tribunal Constitucional, tendo sido declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 54.º, nº 1 da Lei 98/2009 de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, violando assim a obrigação constitucional do Estado de assistência e justa reparação aos trabalhadores que sejam vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional, consagrado no artigo 59.º, nº 1 alínea f) da Constituição da República Portuguesa.
Está consagrado, na Constituição da República Portuguesa, que todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
(…)
f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.
Nesse universo legislativo, resulta do artigo 54.º, nº 1 da Lei 98/2009 de 4 de setembro, o seguinte:
“1 – A prestação suplementar da pensão prevista no artigo anterior é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS.”
A prestação suplementar para assistência à terceira pessoa (PSATP), prevista nos artigos 53.º e 54.º da citada lei, destina-se a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa, em face da situação de dependência em que se encontra, ou venha a encontrar, o sinistrado, por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente.
A atribuição da prestação suplementar depende de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, carecendo de assistência permanente de terceira pessoa.
O familiar do sinistrado que lhe preste assistência permanente é equiparado a terceira pessoa.
Não pode ser considerada terceira pessoa quem se encontre igualmente carecido de autonomia para a realização dos atos básicos da vida diária, nomeadamente, os atos relativos a cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção.
A assistência pode ser assegurada através da participação sucessiva e conjugada de várias pessoas, incluindo a prestação no âmbito de apoio domiciliário, durante o período mínimo de seis horas diárias.
Tal prestação era fixada em montante mensal e tinha como limite máximo o valor de 1,1 de indexante de apoios sociais (IAS). O valor mensal do IAS, para o ano de 2023, era de € 480,43 conforme estabeleceu a Portaria 298/2022 de 16 de dezembro.
A declaração de inconstitucionalidade do Colendo Tribunal surge, então, na sequência do pedido do Ministério Público, uma vez que a redação do artigo 54.º, nº 1 da Lei 98/2009 de 4 de setembro, tinha já sido considerada inconstitucional em três acórdãos (Acórdãos n.ºs 151/2022, 194/2022 e 699/2022), bem como na Decisão Sumária n.º 644/2022. Tais decisões radicaram no reconhecimento da injustiça social de, desde 2009, o referencial para aferir a reparação daquela prestação suplementar, passar a ser o IAS e não a remuneração mensal mínima garantida (RMMG), como antes se previa.
Importa efetuar um exercício cronológico no que ao referencial (IAS) que, desde 2009, esteve na base do cálculo da prestação suplementar de assistência de terceira pessoa (PSATP), diz respeito:
- 2010 – 2016 – € 419,22;
- 2017 – € 421,32;
- 2018 – € 428,90;
- 2019 – € 435,76;
- 2021 – 2022 – € 438,81;
- 2022 – € 443,20;
- 2023 – € 480,43;
- 2024 – € 509,26.
Ao invés, o valor da RMMG, já em 2010, cifrava-se em € 475,00 (muito superior ao IAS).
Atualmente, e desde o dia 1 de janeiro vigora, para o valor da Retribuição Mínima Mensal Garantida, os 820,00 € (oitocentos e vinte euros), publicado em Diário da República, através do Decreto-Lei n.º 107/2023, de 17 de novembro.
Grandezas essas, bem diferentes!
De acordo com o regime previsto na Lei n.º 98/2009, a prestação suplementar de assistência de terceira pessoa é cumulável, quer com as prestações em espécie, quer com as demais prestações pecuniárias devidas em caso de incapacidade permanente para o trabalho:
(i) a pensão por incapacidade permanentee o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente (artigo 47.º, n.º 1, alíneas c) e d), respetivamente), que se destinam a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho (artigo 48.º, n.º 2);
(ii) o subsídio para readaptação de habitação, quando necessária (artigo 47.º, n.º 1, alínea i)).
Pretendeu este Venerando Tribunal, com esta declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, que a efetivação do direito à justa reparação, consagrado na Constituição, não pode deixar de pressupor a atribuição de uma prestação suplementar da pensão, em valor congruente com a necessidade de contratação da assistência de terceira pessoa.
Esta congruência obriga a que aquele limite máximo, a existir, leve em conta não menos do que o valor da RMMG praticada no mercado de trabalho, ou seja, aquele com que o sinistrado terá, ele próprio, de assegurar sempre que a situação de dependência originada pela lesão resultante de acidente de trabalho exija a assistência permanente de terceira pessoa durante oito horas diárias, como prevê o Código de Trabalho.
Esta decisão enfatiza ser esse o referencial pressuposto pelo direito à justa reparação em caso de acidente de trabalho, conclusão especialmente evidente se não se perder de vista que o limite máximo da pensão suplementar tenderá a ser atingido apenas nos casos mais graves, graduando-se em sentido inverso o restante universo de casos.
A inconstitucionalidade da norma não resulta do simples facto de o legislador, em 2009, através da substituição dos referenciais, ter permitido que o montante máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, retrocedesse para um valor significativamente aquém daquele que se obtinha por aplicação da solução anterior.
Resulta sim de esse retrocesso ter afetado indevidamente o próprio direito à justa reparação dos trabalhadores, quando vítimas de acidente de trabalho.
Como nota final, aguardemos que a jurisprudência venha a conferir igual benefício ao papel dos cuidadores formais/informais, em direito civil, nos acidentes de viação.
por Rui de Amorim Mesquita e Sofia Rothes Barbosa, Área de Prática – Seguros e Responsabilidade Civil