Desafiamos o leitor a imaginar um futuro em que um simples clique lhe permite adquirir um imóvel, sem necessidade de interromper outras atividades. É um desafio bem simples, por sinal. Já existe tecnologia mais do que suficiente para colocar esta possibilidade em prática. De um momento para o outro, podemos querer comprar uma milésima parte digital de um edifício em Nova Iorque e, se nos arrependermos, trocamos por uma parte digital de uma empresa no Dubai durante a tarde. Tudo de forma quase instantânea.
Para que esta experiência se torne possível falta a cada um de nós entender a tecnologia Blockchain como fundacional. Os governos devem criar projetos de adoção da tecnologia – numa perspetiva de baixo para cima – permitindo às pessoas familiarizar-se com a nova tecnologia.
Esta mudança de paradigma já se iniciou, mas apenas alguns grupos particulares têm tido a oportunidade de a compreender. Os governos estão atrasados e é por isso mesmo que a tokenização de ativos ainda parece tema de ficção. A tecnologia Blockchain[1] veio para ficar e está na hora de a compreender.
No nosso exemplo, a possibilidade de adquirir um imóvel, ou parte dele, com um clique torna-se possível através da sua tokenização. A tokenização de ativos reais consiste no processo de criação e emissão de tokens virtuais que representam, digitalmente, a propriedade de um ativo imobiliário. Estes tokens podem representar várias realidades: a propriedade de um imóvel ou de uma fração dele, o direito à partilha de lucros decorrentes de um arrendamento ou, até, de um espaço de publicidade.
Acreditamos que este tipo de tecnologia venha impactar o mercado imobiliário, que é o maior mercado de ativos do mundo. Estima-se ter atingido o valor global de investimento em $ 2 000 mil milhões no ano de 2020[2].
As transações no mercado imobiliário são ainda extremamente complexas e morosas, e é neste domínio que a tecnologia Blockchain encontra a sua potencialidade, no sentido de transformar significativamente este setor e alterar os mecanismos de investimento.
Ao permitir o investimento fracionado e a obtenção do título de propriedade de apenas uma porção de um ativo real, a tokenização permite reduzir a barreira de entrada do investimento e atrair novos investidores que de outra forma não investiriam. De igual modo, a tecnologia elimina as barreiras territoriais, pois os ativos tokenizados podem ser consultados e geridos a partir de qualquer lugar e sem necessidade de deslocação ao local onde o imóvel está localizado. A tokenização permite uma gestão simplificada e eficaz dos direitos dos proprietários destas cripto-coisas.
Para além disso, graças à tecnologia Blockchain, sobre a qual a tokenização é construída, a compra e venda de tokens reais pode ser customizada através da utilização de Smart Contracts, reduzindo assim, substancialmente, os custos das transações e tornando-as mais eficientes.
Os níveis de transparência ao longo de todo o processo aumentam e com ele um elevado grau de segurança jurídica associado. Todas as transações são registadas na Blockchain e a sua natureza distribuída torna impossível a dupla venda do mesmo token.
Sendo a tokenização de ativos reais uma realidade ainda ignorada pela maioria das pessoas, é necessário aclarar alguns conceitos que podem, facilmente, ser confundidos: token e criptomoeda.
Enquanto que uma criptomoeda é uma moeda digital cujos registos de transação são verificados e mantidos por uma blockchain, os tokens consistem numa subcategoria de criptomoedas, e constituem uma unidade de valor, uma representação digital de um ativo real, estando construídos sobre uma blockchain já existente. Existem vários standards de tokens baseados na blockchain Ethereum, que são selecionados de acordo com a natureza dos ativos, tais como o ERC-20 ou ERC-1404.
Os tokens são emitidos quando uma empresa realiza uma ICO (Oferta Inicial de Moedas, do inglês Initial Coin Offering), que difere de uma IPO (Oferta Pública Inicial, do inglês Initial Public Offering) pelo facto de que na primeira o investidor receber um token em troco do seu investimento e na segunda receber uma ação.
Neste contexto, podemos distinguir entre utility tokens, que concedem aos seus detentores acesso a um futuro produto ou serviço, fruto da atividade da entidade que o emite e security tokens, que derivam o seu valor de ativos externos negociáveis e são emitidos através de uma STO (do inglês Security Token Offering). Em Portugal, e segundo as regras[3] da ESMA (European Securities and Markets Authority), a titularização destes ativos abaixo de € 5 milhões não necessita sequer de um prospeto.
Neste sentido, suscita-se a questão de aferir se é possível caracterizar os security tokens como valores mobiliários, e submeter-se a sua regulação ao regime jurídico dos mesmos, trazendo, por isso, mais segurança a este tipo de financiamento. Em caso afirmativo, o código de valores mobiliários terá, imperativamente, de ser sujeito a uma reforma legislativa que acompanhe a inovação, permitindo coerência prática aquando da sua aplicação.
A tokenização de ativos reais, apesar das suas inúmeras vantagens, não deixa de ser um processo complexo, tanto para a empresa emitente dos tokens como para um investidor, sendo necessário, por esse motivo, ambos receberem acompanhamento técnico-jurídico qualificado para garantir a sua máxima proteção e a integridade do procedimento.
De facto, os interessados são confrontados com vários obstáculos no momento da tomada de decisão. Em que tipo de token investir? Qual o Smart Contract que mais o beneficia? Qual a natureza público-privada da Blockchain por detrás da sua autoexecução? Qual o regime jurídico aplicável a este investimento e as questões tributárias a ele associadas? Qual o tribunal competente para a resolução de litígios emergentes?
O futuro da tokenização de ativos está nas mãos dos reguladores, que vivenciam o dilema de não poder obstar à inovação, mas sim incentivar o crescimento do ecossistema sem deixar os investidores desprotegidos. A tokenização de ativos reais já está a provocar uma mudança significativa no mercado imobiliário, mas faltará um regime regulatório mais aprofundado e adequado para que se torne uma realidade corrente.
A Proposta de Regulamento da União Europeia relativa aos mercados de criptoativos (MiCA)[4], visa regulamentar, até 2024, a utilização de DLTs (do inglês Distributed Ledger Tecnology) e as suas aplicações, por forma a harmonizar a estrutura europeia para a emissão e comercialização de tokens, como parte da Estratégia de Financiamento Digital da Europa. Aos Estados-Membros incumbe garantir que existe uniformização entre uma emissão de tokens regulamentada pela Diretiva 2014/65/UE, relativa aos mercados de instrumentos financeiro[5], ou pelo Regulamento 2017/1129, relativo ao prospeto a publicar em caso de oferta de valores mobiliários ao público ou da sua admissão à negociação num mercado regulamentado[6], ou ainda por outras existentes regulamentações versus uma oferta de tokens regulamentada pelo MiCA para garantir uma harmonização.
Conclui-se que impera um movimento regulatório no sentido de proteger os investidores, de modo a evitar a repetição do que se verificou nos anos de 2017 e 2018 com a proliferação de fraudes relacionadas com a emissão de tokens por ICO’s.
Não estamos a falar de uma disrupção tecnológica. Trata-se da fundação de um novo sistema, onde novos conceitos emergem e onde as lacunas da lei serão bastantes o suficiente para lançar a confusão entre governos e reguladores mais distraídos.
A boa notícia é que alguns setores em Portugal estão a perceber esta dinâmica de mudança e preparam-se para saber reagir à inação de terceiros com muitas responsabilidades públicas.
[1] VIEIRA, Nuno da Silva, Blockchain in https://adcecija.pt/en/blockchain/.
[2] Cfr. Informação disponível em: https://www.thebusinessresearchcompany.com/report/real-estate-global-market-report-2020-30-covid-19-impact-and-recovery.
[3] Cfr. Informação disponível em: https://www.esma.europa.eu/sites/default/files/library/esma31-62-1193_prospectus_thresholds.pdf.
[4] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52020PC0593.
[5] Disponível em: WWW.EUR-Lex – 32014L0065 – EN – EUR-Lex (europa.eu).
[6] Disponível em: WWW.EUR-Lex – 32017R1129 – EN – EUR-Lex (europa.eu).