Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.03.2024, proferido no âmbito do Processo n.º 5641/15.9T8MTS-G.P2
A 07.03.2024, o Tribunal da Relação do Porto proferiu um Acórdão em que determinou a cessação da obrigação de prestação de alimentos de um pai à filha maior, uma vez que, por motivos de saúde, o progenitor aufere apenas € 356,00 mensais e, a par destas circunstâncias, verifica-se uma grave violação do dever de respeito mútuo entre pais e filhos, que se traduz na inexigibilidade dessa obrigação.
O Acórdão é subsequente a uma decisão de primeira instância que julgou procedente a ação interposta por um pai, que peticionou que fosse declarada cessada a obrigação de prestar alimentos à filha maior.
Decidiu o Tribunal a quo que “os factos considerados assentes, revelam, sem dúvida, uma violação grave de respeito, por banda da requerida, relativamente ao Requerente, seu pai” e, por essa razão, determinou a cessação da sobredita obrigação.
Inconformada com a decisão, veio a filha, aqui apelante, interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Em síntese, quanto à matéria factual, o Tribunal da Relação considerou a seguinte factualidade para alicerçar a sua convicção:
- O pai paga mensalmente a prestação de alimentos e metade das despesas de saúde e referentes às explicações que a filha frequenta.
- A apelante encontra-se a frequentar um estabelecimento de ensino superior privado, sem que o pai tivesse sido consultado previamente.
- Na sequência dos graves problemas de saúde de que padece, foi atribuído ao apelado um grau de incapacidade permanente de 63%.
- Ainda assim, o apelado trabalha cerca de 20 horas semanais, auferindo em média um vencimento líquido de € 356,00.
- O apelado tem mais uma filha, de 18 meses, e para fazer face às avultadas despesas contraiu empréstimos junto de instituições bancárias e de familiares.
- A apelante, sem qualquer explicação ou facto que determinasse tal mudança, desde há vários anos que não contacta ou convive com o pai e restante família paterna, nem conhece a irmã.
- Por seu turno, o progenitor envia convites, manda mensagens e poucas são as vezes que a filha lhe responde.
- A apelante bloqueou o pai das redes sociais e partilha mensagens na qual afirma (nomeando o padrasto) “se tens orgulho do teu pai, posta foto dele” e “Pai não é quem faz, mas sim quem cria! E tu és exemplo disso, obrigada por estares lá sempre”.
Os critérios a que deve obedecer a fixação do montante a prestar estão previstos no artigo 2004.º do Código Civil (doravante “CC”) que prescreve que “os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”.
Nos casos em que os filhos atingem a maioridade, mas ainda não tiverem completado a sua formação profissional, dispõem os arts. 1880.º e 1905.º n.º 2 do CC que se manterá a referida obrigação, até aos 25 anos, na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.
Estas normas derivam da carência económica dos filhos que, ainda que maiores, prossigam os estudos durante alguns anos. Nesses casos, os pais devem – sempre dentro dos limites das suas possibilidades económicas, e atendendo a critérios de razoabilidade – assegurar a sua formação e subsistência.
1. Da (im)possibilidade económica de prestação de alimentos
Desde logo, o dever de alimentos depende da possibilidade de o obrigado os poder prestar, principalmente nestes casos em que os alimentos são destinados à educação de um filho maior e não à sobrevivência de um menor incapaz de prover à sua subsistência.
Neste caso, o pai padece de uma grave doença e, ainda assim, continua a trabalhar a tempo parcial auferindo a quantia mensal de € 356,00. Pelo que, no entendimento do Tribunal, resulta manifesto que não possui capacidade para prestar alimentos de qualquer valor.
Concluindo, desde logo, com base nessa impossibilidade económica de prestar alimentos por parte do progenitor, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão de primeira instância em cessar a prestação de alimentos.
2. Da violação do dever de respeito mútuo que vigora entre pais e filhos
Nos termos da al. c), do n.º 1 do art. 2013.º do CC, a obrigação de prestar alimentos cessa “quando o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado”.
Refere o Tribunal que este dever recíproco de respeito é violado sempre que o filho ofenda gravemente direitos de personalidade do progenitor e/ou incumpra deveres elementares de respeito exigíveis numa relação de filiação.
Nas recentes linhas doutrinárias que têm surgido acerca desta temática, consideram-se ofensivos dos direitos de um progenitor, por parte de um filho, por exemplo: a falta de resposta do filho aos seus contactos; a falta de conhecimento pelo progenitor do número de telefone do filho e o facto de o filho bloquear o progenitor nas redes sociais.
Note-se, naturalmente, que tudo isto deverá ser considerado apenas quando resulte provado que o progenitor obrigado é capaz de proporcionar convívios salutares, que gerem bem-estar para ambas as partes e tudo faz para que esses convívios/contactos existam frequentemente e em plena harmonia e respeito mútuos.
No entendimento do Tribunal da Relação do Porto “está demonstrada uma publicação nas redes sociais objetivamente ofensiva para o apelado ou qualquer pai, já que implica a declaração da sua substituição pelo padrasto. (…) Bloquear o seu pai numa rede social é semelhante a não o cumprimentar publicamente. (…) Mas, mais relevante que isso, não visitar, telefonar ou sequer perguntar pelo estado de saúde do seu progenitor quando este padece de uma doença grave é a concreta violação do art. 1874º, do CC”.
Na presente decisão, o Tribunal da Relação do Porto equiparou o facto de bloquear o pai nas redes sociais à recusa de o cumprimentar publicamente, transmitindo uma mensagem de distanciamento e desprezo, por entender que será uma forma de desrespeito que reflete a evolução dos tempos.
Neste sentido, o Tribunal valorou o facto de, na era digital, as interações virtuais – mormente no que se refere aos jovens e às redes sociais – representarem uma extensão das relações pessoais.
Assim sendo, da conjugação destes factos, decidiu o Tribunal da Relação que, a par da incapacidade financeira do progenitor, existe uma violação flagrante do dever de respeito mútuo de pais a filhos, que se traduz na rejeição de qualquer contacto pela apelante e revela a inexistência do mínimo sentimento filial desta em relação ao pai, referindo que apelante “apenas vê o pai como fonte de rendimento, como sujeito de deveres”.
Esta é uma decisão sem precedentes[1], em que a violação do dever mútuo de respeito de pais a filhos foi valorada e contribuiu, em larga medida, – e a par da determinante carência económica do progenitor – para determinar a cessação da prestação de alimentos a filho maior.
por Odete Sousa Pereira e Carolina Fonseca, Área de Prática – Família, Sucessões e Empresas Familiares
[1] Para consulta de jurisprudência em sentido oposto, veja-se o Acórdão do TRL de 08.03.2012 (ainda que com um voto de vencido) e o Acórdão do TRL de 19.06.2014, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.