O instituto da dupla conforme em sede de recursos cíveis foi introduzido com a Reforma de 2007, tendo sofrido relevante alteração com o Código do Processo Civil (CPC) aprovado pelo Decreto-Lei nº 41/2013, de 26 de junho.
O requisito negativo de admissibilidade de recurso de revista surge no artigo 671º n.º 3 do CPC que prevê que “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância”. Criou-se, assim, um mecanismo de verdadeira restrição do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) enquanto 3º grau de jurisdição, visando racionalizar o uso dos meios processuais, valorizar a intervenção do STJ e potenciar correntes jurisprudenciais estáveis, em nome do princípio da segurança jurídica. O legislador entendeu que, se duas decisões são concordantes entre si, terá sido obtida uma estabilização de juízos que não carece nova sindicância, porque se consolidou.
Desde a introdução deste requisito de admissibilidade de revista que a jurisprudência se depara com a frequente necessidade de interpretar e densificar o conceito de “conformidade decisória”, pressuposto deste instituto e que, na realidade mais discórdia apresenta na aplicação prática.
Mas afinal o que se deve entender por “conformidade decisória” neste contexto?
Procurando responder a esta questão, o Pleno das Secções Cíveis do STJ, proferiu o Acórdão de Uniformização n.º 7/2022, fixando jurisprudência no sentido de que “Em ação de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que carateriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671º n.º 3 do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.”
Este Acórdão incide sobre duas vertentes da densificação e clarificação do conceito de “conformidade decisória”. Primeiro dirime a dicotomia entre a interpretação percursora do critério da coincidência entre decisões estritamente formal (há conformidade decisória se o Acórdão da Relação confirma irrestritamente a decisão da 1º instância), e a interpretação que preconiza a aplicação do elemento de análise racional, segundo a qual não faz sentido admitir a revista quando o recorrente já obteve decisão mais favorável que aquela que teria se o Acórdão da Relação se tivesse limitado a confirmar, sem mais, a decisão da 1ª instância. Preterindo a tese da coincidência formal, o STJ consagra a interpretação do art.º 671º n.º 3 CPC segundo a teoria da conformidade racional das decisões, aduzindo que “a conformidade da decisão das instâncias que carateriza a figura da dupla conforme, obstando a interposição da revista normal, é aferida por um critério de coincidência racional, avaliado em função do benefício (reformatio in melius), que o apelante retirou do Acórdão da Relação relativamente à decisão da 1ª instância”. Aplicando na prática este critério, numa ação de responsabilidade civil extracontratual fundada em acidente de viação, se a 1º instância fixa ao Autor uma indemnização por danos não patrimoniais de € 50.000 e em apelação, a Relação, com iguais fundamentos, altera o dito valor para € 70.000, o Autor fica impedido de recorrer para o STJ em sede de revista normal.
Diz-se no Acórdão a este propósito que “pouco sentido faria inibir a parte de interpor recurso no caso de a Relação manter a mesma condenação da 1ª instância, mas admiti-lo na situação de a parte obter uma reformatio in melius”.
Pretende o Acórdão equiparar, em sede de dupla conformidade decisória, as situações em que o acórdão da Relação mantém o valor indemnizatório, e aquelas em que, sem alterar os critérios em que se funda a fixação da indemnização, apenas aumenta o respetivo valor, retirando, assim, a quem ficou beneficiado com a decisão, a possibilidade de recorrer novamente.
Outra questão sobre a qual o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência se debruçou consiste na delimitação do conceito de dupla conforme aferida pela “autonomia e cindibilidade do objeto processual”.
Não raras vezes nos deparamos com ações cíveis com objetos processuais autónomos, situações em que na mesma ação se formulam várias pretensões agrupadas, mas que podiam dar lugar a ações distintas. Nestes casos, não há dúvida que, para efeitos de aplicação do mecanismo da dupla conforme, analisar-se-á a decisão, individualizando-a de acordo com a posição tomada para cada um dos respetivos objetos. O problema surge quando – como no caso da ação de responsabilidade civil extracontratual fundada em acidente viário -, o objeto processual é único, mas o pedido indemnizatório se divide em várias parcelas. Diante da questão de saber “se o juízo de conformidade pode (deve) ser aferido em função da segmentação da indemnização pelas diferentes parcelas que a pretensão da parte se encontra fatiada” ou se, pelo contrário, se deverá atender a uma “aceção ampla da decisão aferindo a sobreposição em função da totalidade da decisão”, o STJ optou por uma solução que acoberta a 1ª destas teses.
Entende o STJ neste tema que “o aspeto crucial a ter em conta quanto à questão da viabilidade da segmentação da decisão reporta-se à fundamentação em que cada segmento decisório se encontra alicerçado, em termos de poder ser encarado como juridicamente cindível”, estabelecendo um critério de cindibilidade dos segmentos decisórios em que se decompõe o pedido de indemnização global.
No Acórdão fica patente a evolução ideológica do STJ no sentido da crescente restrição do acesso, em recurso, ao 3º grau de jurisdição, numa tendência de excecionalidade da sua intervenção. O Acórdão não está, porém, isento de críticas, sendo exemplo disso a prolação de 8 declarações de voto, que enfatizam os aspetos controversos deste entendimento agora uniformizado, de onde se destaca o que, para nós, gerará mais debate: é que a tese da aferição da dupla conformidade decisória por apelo ao critério de conformidade racional, associado a um juízo de cindibilidade dos segmentos decisórios, leva a que a apreciação da admissibilidade de revista seja um processo forçosamente casuístico e complexo, impondo ao Juiz profunda exegese dos fundamentos de cada decisão, para concluir pela existência ou não de coincidência decisória. Na prática, ao invés da estabilidade jurídica inerente ao mecanismo da dupla conforme, face à elevada subjetividade intrínseca ao processo interpretativo do julgador na aplicação, caso a caso, deste critério, a interpretação fixada no Acórdão promoverá a incerteza e com ela o aumento da litigância. O que não será tanto a resolução de um problema, mas a criação de outro, numa matéria tão relevante como o direito ao recurso.
por João Carlos Teixeira e Ana Luísa Neves, Área de Prática – Contencioso e Arbitragem