A multipropriedade é um modelo de negócio que tem alcançado destaque no mercado do desporto, especialmente no que concerne os clubes de futebol. Este novo modelo caracteriza-se pelo facto de uma só mesma pessoa (singular ou coletiva) ou grupo económico, ser titular de participações societária em dois ou mais clubes de futebol profissional. Este novo formato oferece aos investidores a oportunidade de adquirir uma parte de vários clubes (maioria ou minoria), tornando o futebol um verdadeiro negócio empresarial, como muitos outros.
A indústria do futebol é um dos setores mais lucrativos em todo o mundo, movendo milhões de euros todos os anos. Com adeptos apaixonados a apoiar os seus clubes de coração, as equipas de futebol tornam-se verdadeiros ícones não só desportivos, mas também económicos e sociais, cada vez mais interligados e conexos a outras áreas, como sejam a moda (a título de exemplo, a parceria entre o AC Milan e a Off-White) ou o entretenimento (diversas séries em diversas plataformas sobre o quotidiano dos clubes).
Neste contexto, e de forma natural, encontra-se em crescimento a multipropriedade de clubes de futebol, como uma estratégia inovadora para atrair novos investidores e angariar fundos para o desenvolvimento das equipas. Esta estratégia permite a participação de vários proprietários, que contribuem sobretudo com, mas não limitando a, recursos financeiros e parcerias “inesperadas”.
A multipropriedade é um conceito complexo que envolve a divisão da titularidade de uma sociedade – como é o caso em Portugal das Sociedades Anónimas Desportivas, comumente conhecidas por “SAD” – entre várias pessoas singulares ou coletivas ou, na maioria dos casos, apenas por uma sócia maioritária, ficando a percentagemremanescente para o próprio Clube fundador, conforme decorre de imposição legal.
É, no entanto, importante realçar que a multipropriedade de clubes de futebol apresenta desafios jurídicos significativos porquanto as leis variam de país para país e a regulamentação europeia/mundial procura, em certas circunstâncias, restringir a possibilidade de múltiplos proprietários num clube ou do mesmo proprietário em múltiplos clubes. Além disso, a relação entre os investidores e o clube deve ser regulada de forma clara e precisa, para evitar conflitos de interesse.
A implementação bem-sucedida da multipropriedade de clubes de futebol requer uma estratégia elaborada de forma quase perfeita.
Em 2022 já existiam 68 casos de multipropriedade de clubes. Na sua maioria, existemapenas dois clubes pertencentes ao mesmo proprietário. Contudo, a título de exemplo, o City Group já tem catorze clubes sobre a sua égide (Manchester City, Girona, Lommel, Melbourne City, Montevideo City Torque, Mumbai City, New York City, Troyes, Palermo, Bolívar, Yokohama Marinos, Sichuan Jiuniu FC, Bahia e, mais recentemente, o Basaksehir), espalhados por diversos pontos do globo.
A multipropriedade representa um desafio enorme para as entidades que supervisionam o futebol. Tanto a FIFA como a UEFA têm regras rigorosas relacionadas com apropriedade e o controlo dos clubes de futebol.
Em primeiro lugar, para estas entidades, importa analisar a existência de violações de Fair Play Financeiro, o que visa garantir a sustentabilidade financeira dos clubes. O facto de existir uma pessoa a controlar vários clubes pode utilizar esta mesma possibilidade para que este requisito se cumpra sempre, permitindo que sejam feitos negócios – sem restrições – entre os seus clubes. Num segundo momento, a própria competitividade natural do desporto pode ser posta em causa, uma vez que estas equipas terão, em última instância, um objetivo comum, que pode ser distinto dos princípios gerais do desporto e do futebol.
Vejamos o exemplo prático e já investigado da Red Bull. A relação entre o RB Leipzig (Alemanha) e o RB Salzburg (Áustria) é bastante complexa. Pese embora ambos os clubes serem apoiados financeiramente pela empresa de bebidas energéticas mundialmente conhecida e terem um modelo de negócio em tudo semelhante, são duas entidades perfeitamente distintas.
A relação entre ambos é um tema bastante sensível, levantando questões sobre o controlo e influência do mesmo grupo, em dois clubes diferentes, disputando competições nacionais e internacionais. Sobretudo por referência às competições internacionais, a FIFA e a UEFA sempre levantaram algumas dúvidas sobre se ambas poderiam participar na mesma competição e, eventualmente, enfrentarem-se.
A UEFA, após uma longa e profunda investigação, decidiu que o RB Leipzig (Alemanha) e o RB Salzburg (Áustria) são entidades legalmente separadas e distintas, e, portanto, podem competir nas competições nacionais e internacionais simultaneamente sem violar as regras da UEFA, nomeadamente o Artigo 5.º dos diversos Regulamentos das Competições da UEFA (Integrity of the Competition).
A UEFA entendeu que nenhum indivíduo ou entidade tinha uma influência decisiva sobre mais do que um destes clubes. Apesar desta ligação continuar a gerar controvérsia e debate sobre a ética do modelo de propriedade e financiamento de uma única entidade que controla vários clubes em competições distintas, ficou clarificado que, por um lado, a Red Bull detinha 49% das ações do RB Leipzig, e que, por outro lado, a Red Bullseria apenas patrocinadora principal no RB Salzburg.
Como em tudo o que é polémico e discutível, algumas pessoas valorizam a competitividade e o sucesso trazidos pela influência financeira da Red Bull, enquanto outras acreditam que isto distorce a equidade e a justiça desportiva, pondo em causa os princípios basilares do desporto.
Sem prejuízo do acima exposto, ainda no decurso da investigação, a UEFA impôs algumas alterações nas respetivas estruturas, por exemplo, (i) o RB Salzburg apenas pode ser denominado “Salzburg”, enquanto o RB Leipzig, apenas “Leipzig”; (ii) o RB Salzburg viu-se obrigado a alterar o símbolo, e, em vez de contar com o logótipo da Red Bull, os jogadores da equipa austríaca têm estampado nas suas camisolas um touro com uma bola de futebol; (iii) a UEFA obrigou ainda à mudança de nomes nos estádios, o RB Leipzigjoga na “RB Arena”, e o RB Salzburg no “Stadion Salzburg”.
A multipropriedade é um modelo altamente complexo e com restrições das federaçõesnacionais e das entidades que supervisionam o futebol – sobretudo a nível europeu e mundial – pelo que se impõe o cumprimento escrupuloso das leis e regulamentos desportivos em vigor. Uma estratégia eficiente e pormenorizada é determinante para o sucesso desta modalidade de propriedade. Só assim foi possível aos dois clubes identificados supra, participarem na maior competição de futebol da Europa, e quiçá do mundo.
A multipropriedade de clubes pode ser benéfica para o desenvolvimento do futebol, desde que seja feita de forma ética e transparente, com o objetivo de fazer crescer, de forma sustentável e equilibrada, o desporto. Para tal, é necessário um modelo de Corporate Governance eficiente e consciente, cujo cumprimento seja rigoroso, já que a linha entre o lícito e ilícito é muito ténue.
por Ricardo Cardoso e Carlos Ferreira Vaz, Área de Prática – Desporto, Moda e Entretenimento