Introdução
A reserva legal corresponde a um núcleo patrimonial indisponível, constituído obrigatoriamente a partir de uma parte dos lucros da sociedade, cuja distribuição aos sócios está vedada enquanto não for atingido o limite mínimo legalmente exigido. Pretendeu o legislador com tal mecanismo, que fosse assegurada a continuidade da empresa, a solidez financeira e a proteção dos credores, funcionando como instrumento de estabilidade patrimonial e preventiva face a eventuais perdas futuras.
A sua finalidade é dupla:
- Proteção do capital social: a distribuição de lucros está impedida enquanto a reserva legal não alcançar o montante legalmente exigido, garantindo uma base patrimonial mínima que suporte o capital subscrito e assegure a satisfação das obrigações sociais perante terceiros;
- Reforço da solvabilidade e estabilidade financeira: atua como amortecedor de eventuais prejuízos, permitindo que a sociedade absorva resultados negativos sem comprometer o capital social, fortalecendo a resiliência financeira e refletindo de forma fidedigna a capacidade económica da empresa.
A reserva legal nas Sociedades Anónimas vs. Sociedades por Quotas
Quanto ao regime da reserva legal nas Sociedades Anónimas, nos termos do artigo 295.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), as sociedades anónimas devem afetar 5% dos lucros líquidos do exercício à constituição da reserva legal, até que esta atinja 20% do capital social (que, recorde-se, tem um mínimo legal de € 50.000).
O legislador admite a estipulação de limites superiores ao mínimo legal no pacto social, vedando, todavia, qualquer redução deste limite, considerando a função protetiva que a reserva legal desempenha relativamente aos credores, bem como a sua importância para a estabilidade financeira da sociedade.
Assim, a constituição da reserva legal ocorre de forma gradual e sistemática, obrigando a sociedade a aplicar anualmente uma percentagem legalmente prevista até que seja atingido o limite mínimo, permitindo que sociedades com capital inicial reduzido formem uma reserva compatível com a sua capacidade de geração de lucros.
Por outro lado, relativamente às sociedades por quotas (que, recorde-se, poderão ter um capital social mínimo de € 1), o artigo 218.º do CSC adapta, com as devidas nuances, o regime das sociedades anónimas, impondo que a reserva legal tenha como limite mínimo absoluto o montante de € 2.500.
Deste modo, ainda que 20% do capital social corresponda a um valor menor que € 2.500, a reserva legal a constituir não poderá ser inferior ao montante mínimo absoluto, garantindo a existência de um núcleo patrimonial significativo e indisponível.
A fixação deste mínimo absoluto reflete a preocupação do legislador em proteger o capital social e os credores, independentemente do valor do capital social subscrito.
A divergência interpretativa do limite mínimo nas Sociedades por Quotas
Considerando tudo o que supra se expõe, a articulação entre o artigo 218.º, n.º 2, e o artigo 295.º, n.º 1, ambos do CSC, poderá suscitar alguma divergência quanto à prevalência entre o critério percentual (20% do capital social) e o mínimo estipulado (€ 2.500), nomeadamente para sociedades em que o critério percentual corresponda a um montante mínimo superior ao legalmente estipulado.
Nestes casos, que critério se aplica? A reserva legal a constituir deverá ter sempre como limite mínimo o montante de € 2.500, independentemente do valor do capital social? Ou se o critério percentual resultar num montante superior a € 2.500, é esse que se aplica como limite mínimo da reserva legal?
Por um lado, assistimos a uma posição que defende a aplicação da norma do artigo 218.º de forma imperativa, afastando a aplicação do n.º 1 do artigo 295.º, o que implica a fixação de um montante imutável de € 2.500 como limite mínimo da reserva legal nas sociedades por quotas. Significaria isto que, por mais elevado que fosse o capital social de uma sociedade, o cumprimento da obrigação de constituição da sua reserva legal bastar-se-ia sempre com o valor mínimo de € 2.500.
Ora, tal interpretação parece contrariar, em certa medida, a dupla finalidade supra descrita.
Por outro lado, a posição dominante na doutrina e na prática contabilística, defende que o valor de € 2.500 como limite mínimo absoluto é apenas aplicável quando 20% do capital social corresponder a um montante inferior àquele. Isto é, nos casos em que 20% do capital social resulte num valor superior a € 2.500, será de prevalecer este critério percentual, refletindo de forma fiel a proporção do capital subscrito.
Vejamos:
- A Sociedade X, Unipessoal Lda., tem um capital social de € 1: a reserva legal a constituir será sempre de € 2.500, ainda que, caso se recorresse ao critério percentual, pudesse ponderar-se uma reserva legal de apenas € 0,20.
- Sociedade Y, Lda., com capital social de € 100.000: a reserva legal será de € 20.000, e não do mínimo de € 2.500, correspondendo à aplicação do critério percentual, ou seja, aos 20% do capital social.
Este regime híbrido harmoniza a flexibilidade e fiabilidade do critério percentual em sociedades com capitais sociais mais altos, com a proteção conferida pelo mínimo absoluto em sociedades com capitais sociais baixos, equilibrando assim a liberdade societária com a salvaguarda patrimonial.
Considerações finais
Em síntese, apesar de nos podermos deparar com divergências interpretativas, é entendimento dominante que, nas sociedades por quotas, a reserva legal deve corresponder a 20% do capital social sempre que esse valor exceda os € 2.500, sendo que o montante de € 2.500 funciona exclusivamente como limite mínimo absoluto aplicável quando o critério percentual conduziria a um valor inferior a esse.
Esta interpretação assegura a conformidade com o regime das sociedades anónimas, preservando a proteção dos credores, a estabilidade financeira da sociedade e a constituição de um núcleo patrimonial indisponível, sem restringir indevidamente a liberdade contratual dos sócios.
por Amílcar Silva e Margarida Lucas, Área de Prática – Direito Comercial e Societário