A transposição da diretiva (UE) 2019/1023, tem vindo a ser feita a espaços e com cautelas, no que se afigura uma deliberada senda de exempção das inconstitucionalidades potenciadas pelo desenfreado e pouco ponderado prosseguir do leitmotiv da norma europeia.
O fim primacial da diretiva é, conforme a própria o consigna, contribuir para o bom funcionamento do mercado interno e eliminar os obstáculos ao exercício de liberdades fundamentais como a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento, os quais resultam das diferenças entre as legislações e processos nacionais de reestruturação preventiva, de insolvência, de perdão de dívidas e de inibições.
A aquiescência deste objetivo tem vindo a passar, entre outas vertentes, pela simplificação da tramitação do processo de insolvência e recuperação de empresa, reduzindo a intervenção jurisdicional.
Isto porque parte o legislador, tanto o europeu como o nacional, do pernicioso pressuposto de que a intervenção do tribunal acarreta morosidade dos procedimentos. E, em lugar de procurar mecanismos de agilização da sindicância judicial, incorre a lei no facilitismo de perfilhar uma nociva desjudicialização do processo.
A Diretiva foi transposta para o ordenamento jurídico nacional pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, que revelava já um ou outro “passo atrás” em relação ao que constava da proposta de lei n.º 115/XIV, salvaguardando potenciais inconstitucionalidades que emergiriam se a proposta se viesse a verter incólume em lei.
Todavia, foi publicado recentemente o Decreto-Lei n.º 57/2022, de 25 de agosto, que vem alterar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e na senda de desjudicializar o processo, vem introduzir relevantes alterações na tramitação do incidente de verificação e graduação de créditos no âmbito de processo de insolvência.
Alterações que não foram avante aquando da transposição da diretiva, mas que agora vem o legislador supervenientemente introduzir, alegando em seu sustento que um dos propósitos estabelecidos no PRR aprovado em julho de 2021 é a implementação de reformas na área da justiça económica e ambiente de negócios e, neste conspecto, promover a celeridade e eficiência dos processos de insolvência e recuperação de empresas, com a curiosidade de postergar no preâmbulo do diploma qualquer menção à diretiva já transposta.
A verificação e graduação de créditos é uma das mais importantes vertentes do processo de insolvência, merecendo inclusivé a tramitação em apenso autónomo, sendo da maior relevância a repercussão da decisão aí proferida na esfera jurídica dos credores, seja quanto à existência e quantificação dos créditos, seja quanto à sua qualificação e graduação em atenção às garantias de que beneficiem ou relação de subordinação que seja aferida. A decisão a prolatar neste apenso é uma decisão de direito, sobre factualidade apurada e apreciada à luz da lei.
Contudo, por força da nova redação que o Decreto-Lei n.º 57/2022, de 25 de agosto vem conferir aos artigos 129.º e 130.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante, com a apresentação da lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, prevista no artigo 129.º do referido diploma, o administrador da insolvência passa a apresentar também uma proposta de graduação dos credores reconhecidos, elaborada tendo por referência a previsível composição da massa insolvente. Ou seja, passa o administrador da insolvência quem faz, previamente, a apreciação dos factos arreigados em sustento dos créditos sobre o devedor e dos documentos probatórios apresentados, e quem faz a legal subsunção destes e exara uma proposta de decisão jurisdicional.
O n.º 3 do artigo 130.º do diploma em apreço passa a cometer ao juiz, não tendo havido impugnações da lista e proposta apresentados, e caso concorde com a proposta, o dever de a homologar.
O que significa que, na prática, passa a ser o administrador da insolvência a determinar a qualificação e graduação dos créditos, sob o controlo posterior do juiz do processo que, caso assevere a proposta, passa a proferir uma mera decisão de homologação, em lugar da anterior apreciação jurisdicional da relevante questão em causa.
Sucede, no entanto, que o controlo jurisdicional posterior não afasta a clara violação constitucional que emerge do cometer de uma apreciação – ainda que não decisão – jurisdicional ao administrador da insolvência.
As anteriores alterações legislativas no que tange aos poderes e intervenção do administrador de insolvência são meritórias e antevêem-se eficazes. É o caso da introdução dos rateios parciais obrigatórios ou da faculdade de apresentação de um plano de liquidação com vista a otimizar a rentabilização dos ativos.
Já esta atribuição de um munus jurisdicional ao administrador da insolvência, mesmo que suscetível de sindicância posterior pelo juiz, deverá sobrestar.
Importando notar, aliás, o evidente dissenso entre as alterações introduzidas pelo decreto-lei de agosto e a potenciação da intervenção jurisdicional em sede de sindicância do plano de recuperação apresentado em processo especial de revitalização, introduzida pelo diploma de transposição da diretiva a que temos vindo a fazer referência.
Ainda que o leitmotiv subjacente à alteração legislativa seja meritório, e se considere o ganho correspondente à supressão do tempo necessário para o juiz do processo proferir sentença de verificação e graduação de créditos, agora putativamente substituída por um mero visto, o facto de se estarem a cometer ao administrador da insolvência sindicâncias claramente jurisdicionais – um juízo quanto à verificação e graduação de créditos – revela uma clara desconformidade constitucional.
Se tanto o legislador europeu como o nacional entendem, e expressamente o asseveram, que a intervenção jurisdicional configura fator de entropia à dinâmica empresarial, o que se impõe é, outrossim, um reforço da capacidade de resposta dos tribunais, assegurando uma tramitação mais célere e eficaz dos procedimentos sem prejuízo da tutela jurisdicional e da apreciação das questões de direito por quem de direito.
por João Carlos Teixeira e Pedro Archer Cameira, Área de Prática – Contencioso e Arbitragem