Em 22.03.2022, o pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu um acórdão de uniformização de jurisprudência nos seguintes termos:
“No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.”
Quer o acórdão recorrido[1], quer o acórdão-fundamento[2], versaram sobre a mesma questão fundamental de direito: determinar se a utilização, para alojamento local (“AL”), de uma fração autónoma destinada a habitação, viola o título constitutivo da propriedade horizontal (“PH”)[3] [4].
As duas decisões que subjazem à uniformização de jurisprudência foram proferidas no domínio da mesma legislação: artigos 1418.º, n.º 2, alínea a) e 1422.º, n.º 2, alínea c), ambos do Código Civil (“CC”) e DL n.º 128/2014[5].
Para fundamentar a jurisprudência firmada, foram invocadas as seguintes premissas (comuns ao acórdão recorrido):
– a nova versão dada ao regime do AL pela Lei n.º 62/2018, de 22 de agosto, envolveu uma opção legal de âmbito administrativo no sentido de se prescindir do controlo administrativo sobre o destino ou sobre as proibições de uso da fração constantes do título constitutivo da PH ou de deliberações levadas a registo;
– do referido regime não consta qualquer disposição que revele intenção de derrogar o estatuto condominial inserido no CC;
– a alteração operada pela Lei n.º 62/2018, no sentido de prever a possibilidade de, em determinadas circunstâncias, a assembleia de condóminos adotar uma deliberação em que se opõe ao exercício da atividade de AL em frações autónomas, é uma medida de reação para um AL que não respeita o normal funcionamento de um condomínio, distinta da permissão para o exercício de tal atividade a partir de uma “autorização para habitação” da fração autónoma;
– aquele meio não contempla a tutela de cada condómino nos casos em que ocorra uso da fração autónoma diverso do destino que lhe é dado pelo estatuto condominial ou violação de proibições condominiais;
– o regime do AL, na redação aplicável ao caso dos autos, não contempla a proteção dos direitos dos condóminos perante a instalação de estabelecimentos de AL em fração autónoma destinada a habitação por parte de outro condómino, nem uma disposição derrogatória da tutela desses direitos, prevista no CC;
– a qualquer condómino de fração autónoma de prédio em regime de PH, assistem os meios de tutela previstos no CC para reagir contra a violação das limitações ao exercício do direito de outro condómino, assim como a tutela geral da propriedade, constante do mesmo diploma;
– aos domínios de tutela acima elencados não obsta o facto de ter sido viabilizado, por via administrativa, o registo e instalação de estabelecimento de AL nos termos do respetivo regime;
– sob o ponto de vista da destinação da coisa e da respetiva envolvência sócio-económica condominial, uma vivência habitacional é diversa da sua utilização em AL;
– a afetação, a AL, de uma fração destinada a habitação, não afasta a sua natureza de afetação distinta da habitação constante do título constitutivo da PH;
– os motivos que levaram o legislador a autonomizar a figura do AL não conduzem a que neste se possa identificar um arrendamento de curta duração;
– as utilidades proporcionadas pelo explorador do AL não se consubstanciam numa prestação de gozo habitacional, com um grau de permanência e estabilidade distintos;
– a exploração de estabelecimentos de AL é legalmente definida como o exercício da atividade de prestação de serviços de alojamento;
– para efeitos tributários, o AL não é tratado como habitação;
– o uso de frações autónomas em hospedagem (arrendamento) insere-se num contexto económico-social distinto do AL;
– a solução preconizada é harmoniosa com a Constituição da República Portuguesa, que não impede o legislador ordinário de limitar os direitos de propriedade singular sobre as frações autónomas;
– o paralelismo que se possa fazer com outras atividades permitidas pelo legislador não determina que a solução preconizada se possa sobrepor ao estatuto condominial, sem alteração jurídica do mesmo.
O acórdão-fundamento baseou-se na seguinte fundamentação:
– a Lei n.º 62/2018 prevê a possibilidade de a assembleia de condóminos adotar uma deliberação em que se opõe ao exercício da atividade de AL em frações autónomas, com base na prática de atos que perturbem a normal utilização do prédio e de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, a qual poderá fundamentar o cancelamento do AL pelo município competente;
– a alteração identificada no parágrafo anterior indicia uma menor proteção dos condóminos;
– o projeto de lei que fazia depender o registo do AL de uma deliberação da assembleia de condóminos a autorizá-lo, foi abandonado;
– há uma opção legal no sentido de não impedir em absoluto e previamente o AL em prédios constituídos em PH, com frações habitacionais, admitindo-se a reação dos condóminos ao AL em circunstâncias que lhes são prejudiciais;
– a alteração operada pela Lei n.º 62/2018, é no sentido de exigir autorização do condomínio para a instalação de AL na modalidade de hostel, quando esta venha a coexistir com o fim habitacional;
– os usuários do AL fazem do espaço um uso habitacional;
– tratando-se de AL de pequena dimensão, há paralelismo com a hospedagem;
– existe uma diferença entre modalidades de AL e estabelecimentos de hospedagem;
– há possibilidade de o regulamento do condomínio proibir a realização de AL nas frações;
– ainda que se reconheça o campo de intervenção autónomo da licença de utilização (público) face ao fim indicado no título constitutivo da PH (privado), é de admitir que este possa limitar a utilização permitida por aquela;
– o conceito de alojamento está contido no de habitação.
A decisão recentemente proferida não tem efeito sobre a legislação em matéria de AL, mas não poderá deixar de se refletir nas decisões que os tribunais venham a tomar em processos onde o tema se discute.
A prolação deste acórdão terá impacto na (in)admissibilidade dos recursos, nos litígios em que esteja em causa a mesma questão fundamental de direito – vide artigos 629.º, n.º 2, alíneas c) e d) e 672.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPC.
A decisão do STJ irá, com elevado grau de probabilidade, provocar um incremento nos litígios judiciais tendentes à (i) declaração de ilicitude da exploração, em regime de AL, de frações autónomas integradas em imóveis cujo título constitutivo da PH indique que as mesmas se destinam a uso habitacional e à (ii) condenação dos condóminos a cessarem tal exploração.
Não obstante o sentido da jurisprudência firmada, deve ser esclarecido que o título constitutivo da PH e o regulamento do condomínio podem ser objeto de alteração, mediante acordo de todos os condóminos, no sentido da permissão do AL.
por João Diogo Tavares (Área de Prática – Direito Imobiliário e Urbanismo) e Raquel Ribeiro Correia (Área de Prática – Contencioso e Arbitragem).
[1] Acórdão do STJ proferido em 23.01.2020, no processo n.º 24471/16.4T8PRT.P1S2-A
[2] Acórdão do STJ proferido em 28.03.2017, no processo n.º 12579/16.0T8LSB.L1.SI
[3] O que pressupõe saber se a atividade de exploração de AL integra um ato de comércio ou o conceito de habitação
[4] O que pressupõe saber se o AL integra um ato de comércio ou o conceito de habitação
[5] Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de abril