Foi publicado em Diário da República, no passado dia 29 de Abril, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2025, que julga inconstitucional, por restrição desproporcional da garantia de acesso ao direito e tutela judicial efetiva e da propriedade privada (respetivamente, artigos 20.º e 62.º da CRP), a interpretação normativa extraída da articulação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 81.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) com a alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do Código de Processo Civil (CPC).
Resulta, assim, que o administrador de insolvência pode requerer a abertura do processo de inventário para efeitos de cessação da comunhão hereditária e partilha de bens, sob pena de comprometer a integridade e eficiência da administração da massa insolvente.
- O que está em causa?
O processo de insolvência (artigo 1º do CIRE) “é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
A massa insolvente destina-se primordialmente à satisfação dos credores da insolvência, funcionando como uma salvaguarda do acervo patrimonial do insolvente. Para tal, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que este adquira na pendência do processo, estando destinada à satisfação das dívidas da própria massa insolvente e, depois, dos créditos sobre a insolvência.
Logo, o direito a um eventual quinhão hereditário que o insolvente goze, passa a integrar a massa insolvente, quer no momento da declaração da insolvência, quando a abertura da sucessão ocorre em momento anterior àquela declaração, quer em momento posterior, quando o óbito e abertura da sucessão ocorre após a declaração de insolvência e na pendência do processo.
Assim sendo, o direito integrado na referida massa corresponde a uma quota-parte do insolvente no património da herança, ou seja, o seu quinhão hereditário.
O efeito primordial da declaração de insolvência, quanto ao devedor, é de natureza patrimonial e reflete-se nos seus poderes de atuação da sua esfera jurídica. O devedor fica privado dos poderes de administração e disposição, que são atribuídos ao administrador de insolvência.
Como resulta do disposto no artigo 81º do CIRE, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (n.º 1); e ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros suscetíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo (n.º 2).
E quanto ao administrador da insolvência, estatui o n.º 4 do já referido artigo 81º do CIRE, que assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
- Quais as implicações práticas?
Do que resulta do artigo 81.º do CIRE, o insolvente perde os seus poderes de disposição, que passam a ser da incumbência do Administrador da Insolvência.
Embora, do que resulta da interpretação legal, mormente do previsto no artigo 1085.º n.º 1 do CPC, a qualidade de sucessor legal da inventariada deveria permanece na esfera jurídica do insolvente enquanto interessado direito, a verdade é que permitir que o insolvente iniciasse ou interviesse diretamente no inventário, sem a necessária mediação do administrador de insolvência, poderia comprometer a integridade patrimonial da massa insolvente, frustrando o interesse público subjacente ao processo de insolvência: a satisfação dos seus credores.
Ainda que a massa insolvente não seja sucessora, nem interessada direta na partilha, o que parece inviabilizar o poder de requerer a abertura do processo de inventário, é importante não esquecer a ratio legis do processo de insolvência: não ofender os interesses dos credores.
Aliás, a privação do insolvente de requerer e intervir no processo de inventário, emerge como um corolário necessário do processo de insolvência.
Nestes casos, apreendido o quinhão hereditário e passando o mesmo a fazer parte da massa insolvente, o insolvente deixa de ter legitimidade para requerer ou ser requerido no processo de inventário, uma vez que com a declaração de insolvência perdeu os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário.
É verdade que o próprio insolvente não se encontra totalmente “de mãos e pés atados”, porquanto, mantém a faculdade de impugnar judicialmente os atos praticados pelo administrador de insolvência lesivos dos seus direitos.
No entanto, as possibilidades que lhe são atribuídas apenas reconfiguram as modalidades de exercício dessa tutela.
Em resultado da interpretação normativa subjacente, embora se possa considerar que ao Administrador da Insolvência, na qualidade de substituto processual do herdeiro insolvente, se encontra vedado o poder de requerer a abertura do processo de inventário para a partilha de herança indivisa, porquanto, o direito da massa insolvente recai sobre o quinhão hereditário e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, essa impossibilidade seria incompatível com a satisfação dos credores.
Em suma, entende o Tribunal Constitucional que a interdição imposta ao administrador da insolvência não apenas carece de justificação constitucionalmente sustentável, como também se afigura potencialmente lesiva dos interesses dos credores da insolvência, uma vez que poderia comprometer a integridade e eficiência da administração da massa insolvente, dificultando a célere identificação, liquidação e distribuição do acervo patrimonial disponível para satisfação dos credores.
Assim, como corolário do que entende o Tribunal Constitucional, pode o Administrador da Insolvência, por apenso ao processo de insolvência, requerer a abertura do processo de inventário.
por João Carlos Teixeira e Natacha Moreira, Área de Prática – Contencioso e Arbitragem