Muito embora não se trate de um tema novo, apesar de relativamente recente, seguramente será uma das circunstâncias mais invocadas pelos estabelecimentos comerciais, nos casos de transição de contratos de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) – o Regime de reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local (Lei n.º 42/2017, de 14 de junho).
Com a introdução deste regime, o legislador pretendeu apoiar e promover o comércio tradicional como uma marca diferenciadora das cidades.
Desde logo, ao definir a aplicação deste regime aos estabelecimentos comerciais com especial valor histórico; ao definir o comércio tradicional como aquele que se realiza em pequenos estabelecimentos fora de grandes superfícies comerciais; ao definir estabelecimentos de interesse histórico e cultural ou social local como sendo as lojas com história ou estabelecimentos de comércio tradicional, abertos ao público, que constituam uma referencia viva na atividade económica, cultural ou social; e ao definir como entidades de interesse histórico e cultural ou social, as entidades com ou sem fins lucrativos que constituam uma relevante referência cultural ou social a nível local.
Esta Lei é complementada pelos vários regulamentos municipais de reconhecimento, cuja finalidade é densificar os critérios gerais para reconhecimento de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local; definir critérios especiais tendo em conta as especificidades locais e as medidas de proteção a adotar em cada município; e definir os critérios de ponderação dos vários elementos que são atendidos.
Fazendo um breve enquadramento desta figura, por referência ao Regulamento Municipal da cidade de Lisboa, qualquer estabelecimento poderá candidatar-se a esta distinção, desde que cumpra determinados critérios mínimos (a título de exemplo, o estabelecimento deverá comprovar a sua longevidade, i.e., ter mais de 25 anos). Para que o estabelecimento seja distinguido, devem ser respeitados os critérios de atribuição da distinção, devendo a loja satisfazer duas regras: (i) cumprir obrigatoriamente um critério em cada núcleo; (ii) cumprir mais de 50% dos critérios, no total de três núcleos. O reconhecimento é, assim, da competência da Câmara Municipal de Lisboa, ouvida a Junta de Freguesia em cuja circunscrição se localize o estabelecimento ou entidade e é precedido de um período de consulta pública.
Além das várias medidas de proteção que se encontram previstas neste regime para os estabelecimentos, são também previstos alguns benefícios para os senhorios, por forma a – talvez – compensá-los, na medida em que esta distinção visa manter em vigor os contratos de arrendamento e impedir a sua cessação por períodos adicionais entre 5 a 10 anos. Este regime vem, nitidamente, dificultar o regime de cessação dos contratos de arrendamento e, de certa forma, compactuar com condutas manifestamente abusivas. Esta afirmação parece-vos desprovida de sentido?
Os dois versos da medalha são exatamente esses: por um lado, um regime que visa apoiar e premiar o comércio tradicional, que protege estes estabelecimentos e que prevê um regime legal que visa impedir a extinção destes estabelecimentos, ao obstar a que os respetivos contratos de arrendamento sejam cessados, por determinado período; por outro lado, arrendatários que, sabendo que terão que desocupar o locado, em virtude dos direitos legais dos senhorios, optam por se candidatar a este reconhecimento, como forma de impedir a cessação dos respetivos contratos. Aliás, não só o fazem como forma de impedir o término dos respetivos contratos, como o fazem com o objetivo de negociarem e peticionarem indemnizações exorbitantes. Ou seja, na verdade os estabelecimentos tão-pouco estão interessados neste reconhecimento, trata-se somente de um recurso utilizado para obter, de forma manifestamente abusiva, indemnizações elevadíssimas ou permanecerem no locado, muito embora saibam que nenhum direito legal lhes assistiria.
No final, saíram logradas as intenções do legislador, frustradas as expectativas dos senhorios e beneficiada a posição dos arrendatários. Não estará na hora de reverem este regime?