A concessão de crédito constitui um dos pilares estruturais do sistema financeiro e desempenha uma função essencial no desenvolvimento económico ao permitir o financiamento de projetos empresariais e pessoais. Esta atividade, predominantemente exercida por instituições de crédito e sociedades financeiras , encontra amparo jurídico num regime regulatório complexo de matriz europeia orientado para a proteção dos depositantes e estabilidade do sistema bancário.
Contudo, uma parte significativa do crédito concedido não é reembolsada, originando um incremento dos créditos não produtivos (non-performing loans, NPLs). O peso destes ativos nos balanços das instituições compromete a sua capacidade de financiar a economia, fragiliza o sistema financeiro e evidencia lacunas no quadro jurídico existente, impondo a necessidade de intervenção legislativa que assegure a eficiência do mercado secundário de créditos (vulgarmente apelidado como mercado do crédito malparado), a proteção dos mutuários e a previsibilidade das operações de cessão.
Nesta esteira, o Presidente da República promulgou, a 13 de agosto de 2025, dois diplomas estruturantes:
(i) Regime da Cessão e Gestão de Créditos Bancários (RCGCB);
(ii) Regime da Central de Responsabilidades de Crédito (CRC).
I. O Regime da Cessão e Gestão de Créditos Bancários (RCGCB)
Até agora, a cessão de créditos regia-se pelo Código Civil, aplicando-se as regras gerais sobre a transmissão de créditos. Na prática, isto significava que fundos de investimento e sociedades veículo podiam adquirir carteiras de NPLs sem requisitos específicos de autorização, governação e supervisão. Todavia, a ausência de um estatuto regulatório autónomo criava zonas cinzentas, sobretudo quanto à proteção dos mutuários e à responsabilidade pela gestão corrente do crédito.
Reconhecendo esta lacuna, e apesar de tardia, a transposição da Diretiva (UE) 2021/2167, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2021, vem alterar substancialmente este paradigma, criando um enquadramento harmonizado sobre o acesso e exercício da atividade de gestão de créditos e cessão de créditos, assim como acerca dos requisitos aplicáveis aos adquirentes de créditos.
Resultam como pilares do RCGCB:
(i) A tónica no princípio da neutralidade da cessão, que garante que o mutuário não fica em posição menos favorável apenas porque o seu crédito foi transferido. Ou seja, o adquirente assume integralmente os direitos e deveres do credor originário, ainda que não seja uma instituição de crédito.
(ii) A profissionalização e externalização obrigatória da atividade de gestão de créditos. Assim, sempre que se verifique a cessão de um NPL[1] , a mesma só é eficaz perante o devedor se o cessionário, para além de o notificar da mesma, contratar, por escrito, uma entidade habilitada a exercer a atividade de gestão da posição contratual adquirida, por forma a assegurar tarefas como cobrança, renegociação, informação ao devedor e gestão de reclamações. Esta exigência encontra respaldo nos objetivos europeus de transparência e proteção dos mutuários, afastando modelos de recuperação informais ou agressivos.
(iii) A autorização administrativa, a ser concedida por parte do Banco de Portugal, para o exercício da atividade de gestor de créditos, mediante a verificação de requisitos de governance, idoneidade e adequação dos membros dos órgãos de administração.
(iv) Os deveres imputáveis aos cedentes, cessionários e gestores de créditos, no que respeita à observância de padrões de diligência e cuidado e competência na relação entre si e com o devedor.
Assim, a supervisão do acesso e exercício da atividade de gestão de créditos, bem como a cessão de créditos emergentes de contrato de créditos, fica assim sob a égide do Banco de Portugal, que recebe poderes reforçados, incluindo ordenar a destituição de administradores e proibir o exercício da atividade de gestão. Em complemento, o diploma consagra um regime sancionatório robusto, estabelecendo três níveis de contraordenações – leves, graves e muito graves – com coimas que podem atingir 1 milhão de euros, cuja aplicação pode cumular a sanções acessórias, i.e. a suspensão de atividade, à semelhança do regime atualmente vigente no setor bancário.
II. Regime da Central de Responsabilidades de Crédito (CRC)
Paralelamente, foi aprovado um novo regime para a CRC, que moderniza e alarga um dos instrumentos mais relevantes para a avaliação do risco de crédito inerente à decisão da sua concessão.
A CRC tem como objeto a centralização de informação financeira, contabilística e de risco relativa às responsabilidades de crédito decorrentes de operações realizadas pelas entidades participantes. O seu funcionamento e a supervisão são assegurados pelo Banco de Portugal.
O leque de entidades participantes, as quais se encontram adstritas ao dever de comunicação regular ao Banco de Portugal, é agora mais amplo: para além de instituições de crédito e sociedades financeiras, passam a integrar a CRC organismos de investimento alternativo de créditos, prestadores de serviços de crowdfunding, gestores de créditos atuando em nome e por conta de cessionários, bem como entidades estrangeiras que concedam crédito em Portugal ao abrigo do passaporte europeu.
No que respeita ao acesso à informação, as entidades participantes podem consultar a centralização relativa aos seus clientes e potenciais devedores, mediante consentimento expresso do devedor quando se tratar de um pedido de um gestor de créditos. Os próprios mutuários mantêm o direito de aceder aos seus dados e de ser informados sempre que a recusa de crédito resulte de informação constante da CRC.
Replicando a lógica do RCGCB, o regime sancionatório da CRC sistematiza as contraordenações em: muito graves, graves e leves, com coimas que variam entre 1.000 e 1.000.000 euros, aplicáveis a pessoas singulares e coletivas, sem prejuízo de sanções acessórias, como a publicação das condenações.
Em suma, num contexto em que a confiança, a transparência e a regulação são determinantes, estas medidas não fortalecem apenas o sistema financeiro, como também redefinem o ambiente em que empresas e investidores operam, encetando uma oportunidade de profissionalização e credibilização do mercado.
por Nuno Castelão e Ana Peixoto, Área de Prática – Bancário, Financeiro e Mercado de Capitais
[1] Ou de outro crédito objeto de contrato de crédito tratando de OIA de créditos ou entidades com objeto específico de titularização.