A digitalização do processo penal em Portugal tem vindo a ser gradualmente implementada com o objetivo de modernizar e agilizar o sistema de justiça, assegurando maior eficiência, transparência e acessibilidade. Esta transformação está enquadrada no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), concretamente na Componente 18 – Justiça Económica e Ambiente de Negócios, e tem como princípios norteadores o digital by default e o processo eletrónico.
A Portaria n.º 266/2024/1, publicada no dia 15 de outubro de 2024, procedeu ao alargamento das regras de tramitação eletrónica aos processos e procedimentos que correm termos nos serviços do Ministério Público, como é o caso, entre outros, dos processos penais na fase de inquérito, representando, assim, um marco para a desmaterialização da justiça penal.
Esta Portaria entrou em vigor no dia 3 de dezembro de 2024, porém algumas disposições específicas apenas produziram efeitos a partir do dia 3 de abril de 2025.
No momento da sua entrada em vigor, foram introduzidas as seguintes alterações:
- A apresentação de peças processuais e de documentos passou a ser realizada preferencialmente através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (CITIUS), pelo que, salvo determinação em contrário, os Mandatários ficaram dispensados do dever de exibição das peças processuais em suporte físico e dos originais dos documentos;
- As notificações do Ministério Público dirigidas aos Mandatários durante a fase de inquérito do processo penal, passaram a ser efetuadas através do CITIUS, à semelhança do que já sucedia na fase de julgamento;
- Os atos de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público passaram a ser praticados no CITIUS;
- As notificações eletrónicas entre Mandatários passaram a ser efetuadas diretamente através do CITIUS, tal como já sucedia no processo civil.
A partir do dia 3 de abril de 2025, passou a ser possível consultar eletronicamente processos ou procedimentos que correm termos nos serviços do Ministério Público.
Assim, após prévio despacho do Magistrado do Ministério Público, a consulta passou a poder ser efetuada:
- Por Advogados, Advogados Estagiários e Solicitadores, junto da respetiva secretaria ou através do CITIUS;
- Por Advogados, Advogados Estagiários e Solicitadores, em processos em que não exerçam o mandato judicial, através do CITIUS, no qual será disponibilizado o processo por um período de 10 dias.
- Por quem não é Advogado, Advogado-Estagiário ou Solicitador, junto da Área de Serviços Digitais dos Tribunais, mediante autenticação com recurso ao certificado digital de autenticação integrado no cartão do cidadão ou à chave móvel digital.
O CITIUS garante a confidencialidade dos processos sempre que a lei determine limitações à sua publicidade, nomeadamente quando se trate de processos que se encontram em segredo de justiça.
A tramitação eletrónica trouxe benefícios substanciais para o funcionamento da justiça penal. Destaca-se, desde logo, o aumento da celeridade processual, permitindo a prática dos atos processuais em tempo real e a redução dos tempos administrativos inerentes ao suporte físico. A acessibilidade digital aos autos por magistrados, advogados e funcionários contribui para uma atuação mais célere e coordenada e para uma redução significativa dos custos operacionais a longo prazo, para além de contribuir ativamente para adoção de práticas mais sustentáveis, designadamente através da redução do uso de papel e da diminuição das deslocações.
Apesar dos avanços, persistem desafios relevantes. A plataforma CITIUS tem revelado limitações técnicas e instabilidade, com falhas de funcionamento, que podem comprometer o cumprimento de prazos e a prática de atos urgentes. A prova documental e audiovisual, pela sua natureza, continua a exigir suporte físico, contribuindo para a descontinuidade da desmaterialização do processo. Acresce que, muitos profissionais ainda carecem de formação adequada para uma utilização eficiente do CITIUS, sendo evidente a necessidade de investimento contínuo na capacitação dos operadores judiciários.
A eficácia da tramitação eletrónica está ainda condicionada estruturalmente. Muitos tribunais operam com recursos humanos insuficientes, nomeadamente nas secretarias judiciais, e com sistemas informáticos desatualizados ou sobrecarregados. Esta realidade compromete a resposta atempada às exigências da digitalização e coloca pressão adicional sobre os profissionais do setor.
A transição para o digital by default representa um avanço significativo para uma justiça mais moderna, rápida e transparente. Contudo, sem um reforço efetivo dos meios humanos e tecnológicos, esta transição ficará inevitavelmente aquém do seu potencial transformador, tornando-se essencial assegurar que a digitalização cumpra com os princípios do processo penal e respeite os direitos fundamentais.
por Alexandra Mota Gomes, Luísa Albino e Anabela Franco, Área de Prática – Criminal, Contraordenacional e Compliance