O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, no decurso deste ano, três decisões com particular relevância para o enquadramento jurídico dos estafetas que operam através de plataformas digitais, sobretudo quanto ao reconhecimento da existência de contratos de trabalho.
A importância destas decisões decorre do facto de se basearem na Lei n.º 13/2023, em vigor desde 1 de maio de 2023, vulgarmente conhecida como “lei dos estafetas”. Recorde-se que este diploma introduziu o artigo 12.º-A no Código do Trabalho, que estabelece uma presunção de existência de contrato de trabalho em determinadas situações de prestação de serviços por via de plataformas digitais.
Na primeira decisão, proferida a 15 de maio de 2025 e de caráter mais geral, o STJ clarifica que o reconhecimento de contratos de trabalho com estafetas não está limitado a situações posteriores à entrada em vigor da referida lei. Assim, estafetas cuja atividade anteceda essa data podem igualmente ver reconhecida uma relação laboral, desde que se verifiquem indícios de subordinação jurídica, como o controlo da organização do trabalho, a fixação da remuneração ou a ausência de autonomia na prestação do serviço.
Num segundo processo, relativo à plataforma Glovo, o Acórdão do STJ de 28 de maio de 2025 reconheceu a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre um estafeta e a plataforma. Esta decisão baseou-se na verificação de cinco dos seis critérios legais que indiciam uma relação de subordinação. O acórdão assume particular relevância interpretativa por aplicar de forma concreta a presunção legal introduzida em 2023, com base numa análise detalhada dos factos.
No mais recente caso, de 18 de junho de 2025, referente a estafetas que prestaram serviços à Uber Eats, o Supremo anulou a decisão do Tribunal da Relação que havia confirmado a inexistência de vínculo laboral, considerando que subsistiam elementos factuais por apurar.
Mais concretamente, entendeu o STJ que a qualificação jurídica depende, entre outros fatores, de saber se os estafetas acumulavam esta atividade com outras profissões a tempo completo, se as entregas eram feitas apenas em regime parcial (por exemplo, à noite ou ao fim de semana), se prestavam serviços para outras plataformas concorrentes ou exclusivamente para a Uber Eats, e em que termos. Importa ainda esclarecer se os estafetas em questão dispunham de autonomia na gestão da clientela e qual o valor efetivamente recebido durante o período de atividade.
Nessa medida, até à produção da prova em falta, não é possível uma decisão definitiva quanto à natureza da relação jurídica em discussão, tendo o STJ determinado o reenvio do processo aos tribunais de instância inferior.
Estas decisões surgem num contexto de jurisprudência ainda pouco consolidada. Apesar de existirem algumas orientações mais recentes por parte do Supremo, os tribunais continuam a decidir de forma divergente, dependendo fortemente da prova concreta apresentada em cada caso. Perante esta ausência de uniformidade e num cenário de crescente litigância nesta matéria, o Governo já manifestou a intenção de rever o regime legal aplicável às plataformas digitais e aos respetivos prestadores de serviços.
Importará, por conseguinte, acompanhar atentamente a evolução do enquadramento legislativo e jurisprudencial aplicável à atividade desenvolvida através de plataformas digitais.
por Pedro da Quitéria Faria e João Jorge Pereira, Área de Prática – Direito do Trabalho e da Segurança Social