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Latest NewsNews & MediaAlvo no Património: sobre o Anteprojeto da Perda Alargada de Bens

16 de Junho, 2025

 

No âmbito da execução da Agenda Anticorrupção e da transposição da Diretiva (UE) 2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de abril de 2024, o Conselho de Ministros aprovou, em 23 de abril de 2025, o anteprojeto de lei que estabelece um novo regime jurídico da perda alargada de bens.

 

A aprovação deste anteprojeto, que se encontra ainda em consulta pública, poderá resultar em alterações legislativas, quer ao Código Penal como ao Código de Processo Penal, bem como à legislação extravagante, designadamente à Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, sobre as Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e à Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, que regula o Gabinete de Recuperação de Ativos.

 

O que é a perda de bens?

Podemos encontrar o regime da perda de bens “clássica” no Código Penal, nos termos do qual o Ministério Público tem de provar que determinado instrumento, produto ou vantagem resulta da prática de um crime para que estes sejam declarados perdidos a favor do Estado. Contudo, existe, ainda, o regime da perda alargada de bens, previsto na Lei de Combate à Criminalidade Organizada, nos termos da qual o Ministério Público beneficia de uma presunção de proveniência ilícita quando verificada uma incongruência no património do arguido, ou seja, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Deste modo, ao contrário do que acontece no regime previsto no Código Penal, na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, o Ministério Público não carece de demonstrar que o património é resultado da atividade criminosa, mas determina que seja o arguido a demonstrar a origem do património que é incongruente com os seus rendimentos declarados. Em ambos os casos, a declaração de perda de bens depende da condenação do arguido pela prática de um crime.

 

Que alterações poderemos ver introduzidas caso este anteprojeto seja aprovado?

Em primeiro lugar, haverá lugar à criação de um novo “sujeito processual” – a “pessoa afetada” – que poderão ser:

  • as pessoas singulares ou coletivas que detêm bens objeto de uma decisão de apreensão, de arresto ou de perda, ou contra as quais uma dessas decisões seja emitida;
  • as pessoas singulares ou coletivas cujos direitos em relação a bens objeto de uma decisão de apreensão, de arresto ou de perda sejam diretamente prejudicados por essa decisão;
  • as pessoas singulares ou coletivas cujos bens apreendidos ou arrestados sejam objeto de uma venda antecipada, mesmo antes de uma decisão definitiva de perda; ou
  • as pessoas singulares ou coletivas contra as quais seja apresentado requerimento de perda.

 

Atente-se que a pessoa afetada não se confunde com o arguido, podendo assumir essa posição sem que se conclua pela existência de indícios suficientes da prática do crime. Assumindo a posição de “sujeito processual”, foram previstos os seus direitos e deveres, à semelhança do que acontece com sujeitos processuais tipificados, como o arguido, o defensor, o assistente, a vítima, as partes civis, o Ministério Público e o Tribunal.

 

Esta figura, não é, contudo, uma novidade. No nosso sistema jurídico atual, para além do arguido, enquanto principal visado da perda de bens, encontra-se prevista a qualidade de “terceiro”, considerando-se património do arguido o conjunto de bens transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido. Ainda que esta qualificação pareça introduzir uma nova figura, a verdade é que, materialmente, a figura já existe, ainda que não com a qualificação agora atribuída, e todos os direitos e deveres agora elencados já se encontram previstos no nosso regime – o direito de deduzir oposição, recorrer de decisões que sejam desfavoráveis, constituir mandatário (sendo certo que agora passa a uma obrigatoriedade e não uma mera possibilidade) e ser informada de movimentações processuais que a afetem. Parece-nos, portanto, que a única novidade é a possibilidade de participar nos atos processuais que lhe digam diretamente respeito, podendo ser ouvida.

 

Assim, a “pessoa afetada”, embora não sendo arguida, assume um estatuto híbrido, entre o de parte interveniente/interessada e o de potencial lesada por uma medida sancionatória de natureza patrimonial. O anteprojeto parece tentar conceder novos direitos processuais, semelhantes aos do arguido, contudo estes já se encontram previstos no regime vigente, sob a veste do exercício do contraditório.

 

Adicionalmente, se já existiam dúvidas relativamente à constitucionalidade do regime da perda, invocada pela doutrina – não obstante a pronúncia de conformidade com a nossa Lei Fundamental pelo Tribunal Constitucional – o anteprojeto vem reacender uma discussão aparentemente resolvida, ao prever a possibilidade de ser declarada a perda de bens sem condenação.

 

No âmbito do anteprojeto, para a determinação se os bens resultam de atividade criminosa – com vista à declaração de perda de bens – não é tomado em conta que os factos em apreciação tenham sido objeto de sentença condenatória transitada em julgado. Acresce que não são, igualmente, tomados em conta a factos relativamente aos quais se verificou a prescrição ou extinção do procedimento criminal, nem factos relativamente aos quais ainda não tenha sido instaurado procedimento criminal. Esta desconsideração é fundamentada, por um lado, na necessidade de tornar eficaz a justiça patrimonial, sobretudo em contextos de criminalidade económico-financeira organizada e, por outro lado, pela ideia de que a perda de bens ilícitos não é uma sanção penal, mas uma medida de natureza administrativa sancionatória, orientada para a reposição da legalidade, ou para colocar o agente na situação patrimonial que se encontrava antes do cometimento do crime, e não para punir. A lógica subjacente é semelhante à da perda de enriquecimento injustificado, mas operando com base em presunções legais reforçadas. Não obstante os argumentos aduzidos, questiona-se de que modo poderá a perda de bens ser declarada nestas circunstâncias sem que estejamos perante uma evidente violação do direito de propriedade, do princípio da culpa e do princípio da presunção de inocência, todos constitucionalmente tutelados.

 

Por fim, o novo anteprojeto dedica atenção especial aos valores em espécie – dinheiro vivo, metais preciosos, joias e outros bens facilmente ocultáveis – reconhecendo que são frequentemente utilizados para ocultar riqueza de origem criminosa. Estes bens passam a ser presumidos de origem ilícita, quando desproporcionais face aos rendimentos do visado ou encontrados em contextos suspeitos, permitindo a sua apreensão e eventual perda, mesmo sem condenação penal. Contudo, esta medida é muito próxima, senão semelhante, ao arresto, já previsto na nossa legislação e que pode incidir sobre bens em espécie, por forma a evitar a dissipação dos mesmos aquando do processo, podendo ser requerido ainda sem acusação ou condenação. A novidade é a possibilidade de estes bens (em espécie) podem ser declarados perdidos definitivamente, e não meramente arrestados, sem uma condenação em sede penal.

 

Em suma, este anteprojeto representa uma mudança paradigmática no direito penal patrimonial português. Ao permitir a perda de bens sem condenação penal, instituir um processo autónomo, reconhecer o estatuto da pessoa afetada e reforçar os mecanismos de cooperação e execução, visa-se combater, eficazmente, a criminalidade económico-financeira e alinhar o ordenamento jurídico nacional com os padrões europeus, mas restará saber se estará em conformidade com os princípios fundadores do direito penal que materializam a nossa Constituição.

 

A proposta legislativa aguarda agora a consulta pública e a análise especializada que deverão decorrer até ao dia 30.07.2025.

 

por Alexandra Mota GomesMargarida Sousa de Magalhães, Área de Prática – Criminal, Contraordenacional e Compliance

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