O Conselho de Ministros aprovou, no passado dia 20 de junho, a Agenda Anticorrupção, com o objetivo de tornar mais eficaz a prevenção e o combate à corrupção.
O novo programa conta com 32 medidas divididas em quatro pilares: prevenção, punição efetiva, celeridade processual e proteção do setor público.
As medidas propostas são, por enquanto, apenas “intenções” que carecem de ser concretizadas em sede legislativa.
Embora o Governo tenha garantindo a audição de todos os partidos com assento parlamentar, avizinha-se um aceso debate na Assembleia da República, até porque, algumas propostas, mormente em matéria de punição, parecem, desde já, comprimir direitos, liberdades e garantias, consagrados na Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e garantidos no Código de Processo Penal (doravante CPP).
Alterações no âmbito do RGPC
Em matéria de prevenção, as medidas restringem-se ao aparelho do Estado. Não se antecipa, portanto, que venham a ser aprovadas novas obrigações para as entidades privadas, além das previstas do Regime Geral da Prevenção da Corrupção – RGPC.
No entanto, o Governo pretende introduzir as seguintes alterações com carácter punitivo:
i. Elevar o valor das coimas no caso de incumprimento das regras de prevenção da corrupção, equiparando-as às previstas na legislação de prevenção do branqueamento de capitais;
Atualmente, as contraordenações previstas no RGCP são puníveis com coimas de 1.000 EUR a 25.000 EUR (tratando-se de pessoa coletiva ou entidade equiparada), e até 2.500 (no caso de pessoas singulares).
Recordamos que, em caso de contraordenações por incumprimento das obrigações de prevenção do branqueamento, as entidades financeiras, podem ser sancionadas com coimas de 25.000 EUR a 5.000.000 EUR (pessoa coletiva ou entidade equiparada) ou de 12.5000 EUR a 5.000.000 EUR (pessoa singular). Por sua vez, as entidades não financeiras podem ser sancionadas com coimas de 3.000 EUR a 1.000.000 EUR (pessoa coletiva ou entidade equiparada) e de 1.000 EUR a 1.000.000 EUR (pessoa singular).
ii. Reforçar a proteção dos denunciantes, designadamente em processos judiciais retaliatórios e infundados;
iii. Facilitar a denúncia, através de um formulário disponibilizado no Portal do Governo, único para todo o Governo;
iv. Produzir políticas públicas construídas com base em evidência sobre corrupção e infrações conexas, com o objetivo de reestruturar e reforçar os meios do MENAC.
Perda Alargada
Em matéria de punição, a proposta que gerará maior controvérsia é a criação de um “novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado”, impulsionado pela Diretiva (UE) 2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de abril. A Ministra da Justiça promete, agora, robustecer este regime, admitindo a sua aplicação sem condenação prévia do arguido e mesmo se o processo for arquivado.
Se o objetivo desta medida passa por evitar a dissipação dos bens e transmitir a mensagem que o crime não compensa, também é notório que põe em causa princípios e direitos constitucionais, tais como a presunção da inocência (artigo 32.º, n.º 2, CRP), o direito de propriedade privada (artigo 62.º, CRP) e a proibição da autoincriminação.
A perda alargada de bens, consagrada na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, assenta numa presunção que tudo o que integra o património do arguido e que excede os rendimentos por si declarados tem proveniência ilícita e, por isso, poderá ser arrestado, num primeiro momento e, posteriormente, declarado perdido a favor do Estado.
A natureza jurídica desta medida é controversa, por impor um ónus de prova ao arguido, que terá de demonstrar a origem lícita do património, e beneficiar o Ministério Público com uma presunção legal. É patente que a imposição sobre o arguido deste ónus é bastante penosa, numa fase do processo em que a presunção da inocência tem maior incidência, salvaguardando e protegendo os direitos das pessoas suspeitas.
O referido novo “paradigma” suscita ainda muitas questões: afinal, o que acontece se a pessoa for absolvida? Há uma perda definitiva dos bens, mesmo sem juízo de culpa? O alargamento dos crimes de catálogo será constitucionalmente legítimo?
Redução da amplitude da fase de instrução
Ao nível processual, destaca-se a redução da amplitude da fase de instrução, através da diminuição de expedientes dilatórios.
A instrução como garantia processual facultativa, possibilita ao arguido um meio antecipado de defesa. Trata-se do primeiro momento em que o arguido poderá exercer o contraditório face à acusação que contra ele é deduzida. Apesar de na prática judiciária, por vezes, assistirmos ao seu uso com uma finalidade contrária à sua verdadeira natureza, existem hoje, especialmente na fase de instrução, vários mecanismos legais que permitem ao Tribunal evitar, ou pelo menos diluir, quaisquer expedientes dilatórios. A redução da fase de instrução, sem uma ponderação rigorosa, é atentatória da estrutura ou modelo do processo penal português.
Regime dos recursos
Na mesma linha, o Executivo pretende ainda rever o regime dos recursos quanto aos efeitos e ao momento de subida. Se a intenção é percetível – acabar com a morosidade na justiça – a concretização poderá pôr em causa a confiança no sistema judicial e, mais uma vez, o direito de defesa do arguido. Assim, por exemplo, será importante garantir que se possa recorrer para o Tribunal Constitucional, desde que o recurso não tenha efeito suspensivo.
Atividade do Lobby
Destacamos também o objetivo do Governo em regulamentar a atividade do lobby, com o intuito de terminar com práticas ilícitas, como o tráfico de influências ou outros atos corruptivos que, por vezes, se confundem com o próprio lobby. A implementação da medida não teve o sucesso desejado no passado. Aguardemos novidades em relação ao tema.
Proteção do setor público
Por fim, ao nível da proteção do setor público, as medidas, mais uma vez, são bem-intencionadas, mas veremos se, na prática, conseguem reforçar as capacidades jurídicas do próprio Estado.
A título de exemplo, destacamos a criação de um programa de formação avançada para funcionários envolvidos em processos de contratação pública, para deteção e proteção face a práticas corruptivas. Esta medida serve de exemplo e pode auxiliar as entidades privadas a dotarem os seus programas formativos de conteúdos que versem sobre esta matéria.
Numa ótica meramente estrutural, critica-se a inserção do reforço de conteúdos curriculares nas escolas no pilar da proteção do setor público. Aplaude-se a medida em causa, que só pode pecar por tardia. No entanto, não deveria, antes, estar inserido no pilar da prevenção, em geral?
Do direito premial
Consta também da referida agenda o reforço, no âmbito da obtenção de prova, de aplicação do direito premial. Tal reforço assentará no alargamento do catálogo de crimes, bem como das fases processuais onde a colaboração premiada pode operar. Se é certo que o regime positivado no Código de Processo Penal é muito criticável na forma e no modo como está descrito, pelos prémios que atribui ou pela sua questionável eficácia, o seu alargamento a outro tipo de crimes ou a permissão da sua aplicação em vários momentos do processo penal, deverá ser pensada de forma muito cautelosa, sob pena de passarmos a vulgarizar aquilo que deve ser a exceção.
Em suma, a Agenda Anticorrupção projeta um conjunto de propostas que criaram mais dúvidas do que certezas. Algumas destas medidas encontram-se na fronteira entre o reforço da eficácia do combate à corrupção e a violação dos direitos fundamentais dos cidadãos. Mais uma vez, a concordância entre os dois interesses conflituantes torna-se mais exigente, sem podermos descurar, nunca, que o arguido é um sujeito do processo e não o seu objeto.
por Alexandra Mota Gomes, Ana Raquel Conceição e Beatriz Eusébio da Costa
Área de Prática – Criminal, Contraordenacional e Compliance