Uma das recorrentes questões que a presente pandemia desde logo suscitou no mundo jurídico foi o reflexo de uma situação – que ao mesmo tempo é tão inesperada e tão vasta nos efeitos – nas relações contratuais em curso.
A inusitada situação sanitária em curso configura uma alteração anormal, inesperada e relevante das circunstâncias em que foram firmados contratos e assumidas obrigações.
É um princípio basilar do nosso ordenamento jurídico que os contratos são feitos para serem cumpridos. É esta a regra e o demais são exceções. É certo que os contratos podem conter cláusulas de hardship que acautelem alterações de circunstâncias como a presente, e decerto que doravante estas se multiplicarão. Todavia, nos contratos “pré-covid”, este tipo de salvaguarda escasseia.
Nada prevendo os contratos, haverá que aferir se estão verificados os pressupostos legais para resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias. Estes pressupostos, previstos no artigo 437.º do Código Civil, são vagos, indeterminados, e inculcam a necessidade de um cuidado exercício de interpretação.
Assim, importará saber se as circunstâncias que estiveram na base da decisão de contratar sofreram uma alteração anormal. E alteração anormal não será uma mera flutuação de preços ou de mercado, por exemplo, mas uma situação verdadeiramente excecional, como um atentado terrorista, uma guerra, ou, lá está, uma pandemia global.
Por outro lado, é mister que a manutenção do contrato incólume afete gravemente o princípio da boa-fé. Não sendo fácil determinar a partir de que ponto, de que número, é que os prejuízos decorrentes da subsistência do negócio excedem os limites da boa-fé, tem a doutrina e jurisprudência apelado à bitola dos “prejuízos descomunais”.
Por fim, é necessário que a alteração de circunstâncias não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato, como sucede, por exemplo, nos contratos de swap ou noutros contratos que comportem uma álea inerente ao próprio negócio.
Verificados estes requisitos, é por demais plausível que seja sustentada a modificação ou a resolução do contrato. Tome-se o exemplo do dono de uma discoteca que, antes de eclodir a pandemia, havia encomendado um novo equipamento de som e luzes, num investimento de largos milhares de euros e, pouco tempo depois viu o seu estabelecimento encerrado por imposição legal decorrente da situação pandémica.
Uma coisa é certa: nesta questão, como em muitas outras, quanto mais eficaz o trabalho preventivo na relação negocial pré-contratual e nos termos do contrato, mais salvaguardadas ficam as partes na eventualidade de uma alteração anormal das circunstâncias.
No mais, a aplicabilidade deste instituto da resolução ou modificação do contrato dependerá sempre da rigorosa e completa alegação e prova dos factos que integram os vagos e indeterminados pressupostos legais.
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por Pedro Archer Cameira, Área de Prática – Contencioso e Arbitragem