Motociclistas reconhecidos como utentes de estrada vulneráveis: reforço da responsabilidade pelo risco nas estradas
Os motociclistas passaram a ser formalmente reconhecidos como utentes de estrada vulneráveis no contexto da segurança rodoviária, em linha com as orientações da Diretiva (UE) 2019/1936, transposta para o ordenamento jurídico nacional pelo Decreto-Lei n.º 84-B/2022.
Este enquadramento jurídico reforça o princípio da responsabilidade objetiva pelo risco, especialmente em acidentes entre veículos motorizados pesados e utentes de estrada vulneráveis, como motociclistas, ciclistas e peões. Em harmonia com o direito europeu, os condutores de veículos com maior potencial lesivo assumem um grau acrescido de responsabilidade em caso de sinistro.
A medida visa reduzir a sinistralidade grave e garantir maior proteção a quem circula com menor proteção física. O princípio está igualmente previsto em legislações de outros Estados-Membros da UE, consolidando um regime de proteção reforçada para os mais expostos nas vias públicas.
Esta mudança exige uma resposta coordenada entre políticas públicas, fiscalização e educação rodoviária, assegurando que a infraestrutura, o comportamento dos condutores e o enquadramento legal convergem para a proteção efetiva dos motociclistas.
Motociclistas como Utentes de estrada vulneráveis
A responsabilidade pelo risco e a harmonização com o Direito Europeu
No quadro das políticas de segurança rodoviária europeias e nacionais, os motociclistas são hoje reconhecidos como utentes vulneráveis das vias públicas, estatuto que tem implicações diretas na análise da responsabilidade civil automóvel em caso de acidente. Esta qualificação decorre de uma evolução legislativa que reforça a proteção dos utilizadores mais expostos nas estradas.
A Diretiva 2019/1936, que alterou a Diretiva 2008/96/CE relativa à gestão da segurança da infraestrutura rodoviária, introduziu expressamente o conceito de “utilizadores vulneráveis da estrada”, abrangendo:
- Peões
- Ciclistas
- Motociclistas
O objetivo é garantir que as políticas de segurança viária considerem o risco acrescido para estes grupos, obrigando os Estados-Membros a adaptar a gestão da infraestrutura e as práticas de avaliação de risco em conformidade.
Resolução da Assembleia da República n.º 43/2025, de 25 de fevereiro de 2025
Pontos principais recomendados ao Governo:
- Eliminar materiais escorregadios nas juntas de dilatação das vias.
- Substituir gradualmente juntas de dilatação, segundo cronograma da Infraestruturas de Portugal.
- Proibir lombas redutoras de velocidade em curvas, tendo em conta os riscos para motociclistas.
- Criar sinalização vertical específica para motociclistas (alertas para linhas férreas, juntas, grelhas, tampas metálicas).
- Regulamentar zonas avançadas para motociclos junto de semáforos e cruzamentos.
- Aplicar proteções nas guardas metálicas das vias (autoestradas e vias principais), priorizando “pontos negros” e planeando a extensão da proteção
Transposição Nacional – Decreto-Lei n.º 84-B/2022
Este diploma transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva (UE) 2019/1936. Reconhece que os motociclistas estão entre os utilizadores da estrada mais expostos a lesões graves e fatais, e determina:
“A avaliação da segurança rodoviária deverá ter em conta os riscos acrescidos para os utentes vulneráveis, nomeadamente peões, ciclistas e motociclistas.”
(Art. 2.º do Decreto-Lei n.º 84-B/2022)
Em consonância com o princípio da responsabilidade objetiva pelo risco – consagrado no regime da responsabilidade civil automóvel – os condutores de veículos motorizados que representam maior risco (nomeadamente automóveis e camiões) têm um dever acrescido de cuidado e vigilância relativamente a utentes vulneráveis.
Este princípio, já sedimentado na doutrina e jurisprudência portuguesa, ganha agora reforço normativo com a inclusão dos motociclistas no conceito legal de vulnerabilidade, aproximando o regime português do que já vigora em países como a Alemanha, França ou Países Baixos.
Implicações Práticas:
- Maior exigência de diligência para condutores de veículos de maior porte
- Reforço da imputação de responsabilidade em situações de colisão com motociclistas, mesmo sem culpa direta
- Adaptação da infraestrutura rodoviária para melhor visibilidade, aderência e segurança dos motociclistas
- Foco na formação e campanhas de sensibilização
O reconhecimento dos motociclistas como utentes vulneráveis representa um avanço importante para a segurança rodoviária em Portugal, alinhando o país com as melhores práticas da União Europeia. Ao mesmo tempo, consolida a responsabilização dos condutores com maior potencial de dano, num sistema jurídico que favorece a proteção dos mais frágeis.
Trata-se de uma mudança de paradigma que coloca o princípio da solidariedade viária no centro da política pública, da legislação e da jurisprudência.
Com a transposição da Diretiva (UE) 2019/1936 para o ordenamento jurídico português, através do Decreto-Lei n.º 84-B/2022, os motociclistas foram formalmente incluídos na categoria dos utentes vulneráveis da estrada. Esta alteração legislativa tem implicações diretas para as seguradoras, em particular no âmbito da responsabilidade civil automóvel obrigatória.
O Risco Agravado nos Acidentes com Motociclos
Em colisões entre veículos automóveis (carros, camiões, etc.) e motociclos, a probabilidade de lesões graves ou morte para o motociclista é significativamente superior, mesmo quando circula dentro da legalidade. O legislador europeu reconheceu este fator de risco estrutural e determinou que os Estados-Membros adotem medidas para reforçar a proteção legal e infraestrutural desses utentes.
Obrigações das Seguradoras: Responsabilidade Civil Automóvel e Princípio do Risco
Enquadramento legal:
A responsabilidade civil automóvel em Portugal rege-se atualmente pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, que obriga à celebração de um seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório para todos os veículos motorizados.
Este seguro:
- Garante a reparação dos danos causados a terceiros em consequência da circulação do veículo seguro;
- Aplica-se independentemente da culpa, desde que haja nexo causal entre a utilização do veículo e o dano sofrido.
Aplicação ao caso dos motociclistas:
Quando um motociclista é vítima de um acidente causado por um veículo de maior porte, a seguradora desse veículo poderá ter de indemnizar os danos mesmo que a culpa não esteja totalmente esclarecida. Este regime decorre da aplicação do princípio do risco, largamente acolhido na jurisprudência portuguesa:
“Quem cria um risco específico com a circulação do seu veículo deve responder pelos danos que essa atividade possa causar, independentemente da prova de culpa.”
Assim, mesmo sem culpa comprovada do condutor, as seguradoras podem ser chamadas a indemnizar motociclistas com base no risco objetivo da circulação automóvel — agravado pelo estatuto de vulnerabilidade do motociclista.
Responsabilidade Agravada e Deveres Específicos das Seguradoras
As seguradoras, ao serem chamadas a garantir este tipo de risco, têm obrigações específicas, nomeadamente:
Dever de celeridade na regularização do sinistro:
- Em acidentes com utentes vulneráveis, espera-se uma análise prioritária e célere, especialmente em casos com lesões corporais graves.
Avaliação proporcional da culpa:
- Mesmo em casos de responsabilidade partilhada, o estatuto de vulnerabilidade do motociclista deve ser ponderado na atribuição proporcional de responsabilidade, como previsto pelo art. 570.º do Código Civil.
Indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais:
- Lesões graves, períodos de incapacidade e danos morais (sofrimento, perda de qualidade de vida, danos estéticos) devem ser integralmente compensados, conforme os critérios da Tabela Nacional de Avaliação de Incapacidades e jurisprudência atualizada, embora não sejam vinculativos nas decisões judiciais.
Subscrição de apólices com cláusulas específicas:
- Algumas seguradoras já oferecem coberturas adicionais para motociclistas, incluindo danos próprios, acidentes pessoais e proteção jurídica — o que pode reduzir litígios futuros e acelerar compensações.
Harmonização com o Direito Europeu
A atuação das seguradoras deverá também respeitar os princípios da Diretiva 2009/103/CE (seguro automóvel obrigatório), complementada pelas exigências da Diretiva 2019/1936 no que toca à proteção dos utentes vulneráveis. A evolução normativa europeia aponta para um modelo em que:
- A responsabilidade objetiva tende a prevalecer nos acidentes com utentes vulneráveis;
- As seguradoras devem adaptar-se para garantir soluções mais céleres, justas e proporcionais.
A evolução legislativa recente coloca os motociclistas no centro do regime de proteção jurídico-securitário. Esta nova abordagem impõe às seguradoras não apenas o cumprimento formal dos contratos de seguro, mas também um papel ativo na proteção efetiva dos direitos dos utentes vulneráveis da estrada.
Uma estrada mais segura começa também com seguradoras mais conscientes do seu papel social, jurídico e económico.
O Artigo 570.º do Código Civil, relativamente à distribuição da responsabilidade entre condutores e o reconhecimento da vulnerabilidade, diz-nos que:
Artigo 570.º – Responsabilidade de várias pessoas
- Se o facto tiver sido praticado por várias pessoas e não for possível determinar a medida em que cada uma contribuiu para o dano, a responsabilidade é solidária.
- Se, porém, o lesado tiver concorrido culposamente para o dano, o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo-se em conta a gravidade das culpas e as consequências do facto.
Aplicação em Contexto Rodoviário com Motociclos
Em acidentes rodoviários envolvendo motociclos e veículos automóveis, é comum que ambos os condutores tenham praticado atos com alguma relevância causal para o acidente — por exemplo, um motociclista que circulava em excesso de velocidade e um automobilista que mudou de faixa sem sinalizar. Nestes casos, aplica-se o art. 570.º, n.º 2, determinando a repartição equitativa da responsabilidade.
Contudo, a jurisprudência e a doutrina tendem a mitigar a responsabilidade do motociclista com base em dois fatores:
- Vulnerabilidade Física do Motociclista
A partir do momento em que o motociclista é qualificado como utente vulnerável (cf. Decreto-Lei n.º 84-B/2022 e Diretiva 2019/1936), a sua fragilidade física perante o impacto deve ser considerada na ponderação da culpa.
- Os tribunais reconhecem que a maior suscetibilidade a sofrer danos graves justifica uma proteção reforçada, o que pode levar a uma atenuação da responsabilidade do motociclista, mesmo que tenha contribuído para o acidente.
- A equidade prevista no artigo 570.º, n.º 2, serve precisamente para ajustar a responsabilidade em função do desequilíbrio físico e técnico entre os intervenientes.
Exemplo prático: Um motociclista circulava ligeiramente acima da velocidade permitida, mas um automóvel fez uma manobra brusca de mudança de direção sem aviso. Mesmo havendo culpa concorrente, os tribunais poderão atribuir a maior parte da responsabilidade ao condutor do automóvel, por representar um risco mais elevado.
- Responsabilidade Pelo Risco Objetivo
A doutrina portuguesa maioritariamente defende que o princípio do risco, embora não esteja expressamente consagrado no Código Civil, é adotado pela jurisprudência em matéria de acidentes de viação.
Isso significa que:
- Quem conduz um veículo com maior potencial lesivo assume um risco maior, independentemente de culpa.
- Em caso de culpa concorrente, o risco criado por esse veículo justifica um maior grau de responsabilidade objetiva, que deve ser refletido na aplicação equitativa do art. 570.º.
Posição Doutrinal:
Autores como Antunes Varela e Pires de Lima admitem que a equidade prevista no artigo 570.º deve permitir uma ponderação mais flexível da culpa, especialmente quando há desequilíbrio estrutural entre os intervenientes.
A responsabilidade pelo risco, ainda que não autonomamente regulada no Código Civil, é integrada via jurisprudência nos termos do art. 570.º, sobretudo quando em causa estão motociclistas, ciclistas ou peões.
Em suma, a crescente presença de motociclistas nas vias públicas, associada à sua maior exposição ao risco, impõe a necessidade de uma abordagem estruturada e eficaz na adaptação das infraestruturas rodoviárias. A sinistralidade envolvendo veículos de duas rodas não pode ser encarada como um mero efeito colateral da mobilidade moderna, mas antes como um sinal inequívoco da urgência de políticas públicas orientadas para a proteção ativa destes utentes.
A qualificação dos motociclistas como utentes vulneráveis – à semelhança dos peões ou ciclistas – não é apenas uma exigência de justiça material, mas uma decorrência lógica do princípio da igualdade no acesso seguro à via pública. Medidas como a instalação de proteções nas guardas metálicas, a eliminação de materiais escorregadios, a criação de zonas de paragem avançada e a melhoria da sinalização são não só tecnicamente viáveis, como já largamente recomendadas por entidades especializadas e pela própria Assembleia da República, nomeadamente através da Resolução n.º 43/2025.
Adaptar as estradas aos motociclistas não é um privilégio, mas uma resposta ética, legal e socialmente necessária à vulnerabilidade estrutural destes condutores. Apenas com vias verdadeiramente inclusivas será possível alcançar uma mobilidade segura, sustentável e equitativa para todos.
por Rui de Amorim Mesquita e Rita Vaz Corado, Áreas de Prática – Seguros e Responsabilidade Civil