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News & MediaLatest NewsO novo paradigma da perda alargada de bens

16 de Julho, 2024

Criar um Kraken para combater outro Kraken?

As crónicas nórdicas da Idade Média referem um monstro marinho terrível, do tamanho de uma ilha, que se deslocava pelos mares situados entre a Noruega e a Islândia. Nos relatos intrigantes dos séculos XVI e XVIII, o monstro foi designado de Kraken, um termo norueguês relativo a “algo retorcido”, e descrito como uma besta com uma milha e meia de comprimento que, caso agarrasse o maior navio de guerra, o arrastaria para o fundo.[i]

No passado dia 20 de junho, o Governo aprovou a Agenda Anticorrupção, com o objetivo de tornar mais eficaz a prevenção e o combate à corrupção.

Das 32 medidas apresentadas, destaca-se o novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado.

O regime da perda alargada de bens não é novidade em Portugal, encontrando-se consagrado no nosso ordenamento jurídico desde 2002, na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.

Não obstante, com este novo paradigma, a atual Ministra da Justiça prometeu robustecer o regime em vigor, já em si bastante controverso, pois coloca em causa a garantia dos princípios e dos direitos fundamentais e a necessidade de reforço da ação punitiva do Estado nestas matérias.

 

A Diretiva (UE) 2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de abril de 2024, relativa à recuperação e perda de bens[ii]

Este novo paradigma surge na sequência da aprovação da Diretiva (UE) 2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de abril (“Diretiva”), através da qual os Estados-membros devem adotar as medidas legislativas necessárias para procederem à consagração ou atualização do respetivo regime jurídico relativo à perda de bens, visando o combate ao enriquecimento ilícito resultante da prática de atos de corrupção ou infrações conexas e ao crescimento exponencial da criminalidade organizada.

Em suma, a Diretiva visa o reforço da cooperação transfronteiriça entre os Estados-Membros, através dos respetivos gabinetes de recuperação, pretendendo alargar o âmbito de aplicação a outros tipos de crimes – como a criminalidade ambiental –, e estabelecer novas regras no que respeita à administração e preservação eficaz dos bens confiscados, impondo a adoção de novos poderes aos Estados-Membros para executarem ações imediatas ou autorizarem os respetivos gabinetes de recuperação de ativos a tomar essas ações, por forma a salvaguardar os bens até à decisão final sobre a perda e a respetiva alienação com base nessa decisão.

Neste âmbito, a Diretiva prevê, no seu artigo 15.º, a controversa perda não baseada numa condenação.

Esta figura, não é, contudo, uma novidade. Com efeito, desde a aprovação da Diretiva (UE) 2014/42, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, que a perda é admissível, pese embora apenas nas situações de doença ou fuga do suspeito ou arguido.[iii]

A nova Diretiva veio, assim, aumentar o leque de situações em que a perda sem prévia condenação é admitida, designadamente, quando o prazo de prescrição previsto no direito nacional do crime em causa seja inferior a 15 anos e tenha terminado após o início do processo-crime, ou no caso da morte do suspeito ou do arguido.

Mas vai mais longe, ao consagrar que, na ausência das circunstâncias acima referidas, possa ser determinada a perda de bens sem condenação prévia, quando seja previsível que i) do processo resulte uma condenação, pelo menos, relativamente aos crimes suscetíveis de gerar um benefício económico substancial; e ii) se o tribunal nacional estiver convencido de que os bens alvo da perda resultam ou estão relacionados com o crime em causa.

A Diretiva carece ainda de transposição para produzir os seus efeitos a nível nacional. Porém, atendendo às (parcas) concretizações com que foi apresentado o novo paradigma, este parece coincidir com os termos ali propostos, concretamente, ao anunciar o alargamento das situações em que pode ser dispensada a prévia condenação para que seja decretada a perda dos bens.

 

A nossa Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro

Em Portugal, o regime vigente prevê uma perda assente na presunção de que tudo o que integrar o património do arguido e que exceda os rendimentos por si declarados, tem proveniência ilícita, podendo, por isso, ser arrestado e, posteriormente, declarado perdido a favor do Estado. Neste regime, é o arguido quem tem de fazer prova, no processo, de que o seu património dissonante não foi obtido através ou em resultado da prática de um crime – é a chamada inversão do ónus da prova quanto à licitude da proveniência dos bens do arguido.

Este regime tem como finalidades mediatas combater o enriquecimento ilícito e a dissipação de bens. Isto é, visa impossibilitar que os suspeitos ou arguidos obstem ou evitem a perda do seu património, através da sua transferência para terceiros com conhecimento da causa.

Tal como se depreende facilmente, este regime contende com direitos fundamentais, entre os quais, o princípio, constitucionalmente consagrado, da presunção da inocência; o direito (com natureza constitucional implícita) à não autoincriminação; e o direito de propriedade privada.

O debate pouco pacífico desta matéria tem deixado sempre por responder a seguinte questão: se o arguido deve ser presumido inocente no decorrer de todo o processo e até que se faça prova plena e definitiva do contrário, ao transferirmos para ele o dever de provar que o seu património não tem origem num crime, que presunção de inocência lhe resta?

A presunção não será, ao invés, sobre a ilicitude do seu património, a qual corre a favor do Ministério Público, pese embora nem sempre em benefício da celeridade do processo ou, até, da justiça material?

Por isso, é legítimo questionar se, na tentativa de combater o Kraken da corrupção, as medidas previstas na Diretiva não resultarão na criação de um outro monstro, e com ele, comprometer, ainda mais, os direitos, liberdades e garantias das pessoas envolvidas em processos-crime.

Este novo regime impulsionado pela Diretiva é claro na intenção do reforço das medidas de prevenção e de combate à corrupção. Porém, a ausência de esclarecimentos sobre a forma como será operada a criação do novo paradigma deixa espaço para interrogações e para o alarme jurídico, correndo, inclusive, o risco de esbater a perigosa fronteira entre a procura pela maior eficácia dessas medidas e a violação dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Se, por um lado, é evidente que a corrupção é o Kraken desta e das próximas décadas, ameaçando afundar as instituições e os direitos edificados pelo Estado de Direito Democrático. Por outro, impõe-se ponderar que o combate a este monstro não pode ser feito com a criação de outros, igualmente perigosos, destrutivos e, muitas vezes, ineficazes.

 

por Alexandra Mota Gomes e Luísa Albino, Área de Prática – Criminal, Contraordenacional e Compliance

 


[i] https://www.nationalgeographic.pt/historia/o-kraken-uma-lula-gigante-escondida-no-oceano_2855

[ii] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L_202401260&qid=1714727309234

[iii] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0042

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