Criar um Kraken para combater outro Kraken?
As crónicas nórdicas da Idade Média referem um monstro marinho terrível, do tamanho de uma ilha, que se deslocava pelos mares situados entre a Noruega e a Islândia. Nos relatos intrigantes dos séculos XVI e XVIII, o monstro foi designado de Kraken, um termo norueguês relativo a “algo retorcido”, e descrito como uma besta com uma milha e meia de comprimento que, caso agarrasse o maior navio de guerra, o arrastaria para o fundo.[i]
No passado dia 20 de junho, o Governo aprovou a Agenda Anticorrupção, com o objetivo de tornar mais eficaz a prevenção e o combate à corrupção.
Das 32 medidas apresentadas, destaca-se o novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado.
O regime da perda alargada de bens não é novidade em Portugal, encontrando-se consagrado no nosso ordenamento jurídico desde 2002, na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.
Não obstante, com este novo paradigma, a atual Ministra da Justiça prometeu robustecer o regime em vigor, já em si bastante controverso, pois coloca em causa a garantia dos princípios e dos direitos fundamentais e a necessidade de reforço da ação punitiva do Estado nestas matérias.
A Diretiva (UE) 2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de abril de 2024, relativa à recuperação e perda de bens[ii]
Este novo paradigma surge na sequência da aprovação da Diretiva (UE) 2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de abril (“Diretiva”), através da qual os Estados-membros devem adotar as medidas legislativas necessárias para procederem à consagração ou atualização do respetivo regime jurídico relativo à perda de bens, visando o combate ao enriquecimento ilícito resultante da prática de atos de corrupção ou infrações conexas e ao crescimento exponencial da criminalidade organizada.
Em suma, a Diretiva visa o reforço da cooperação transfronteiriça entre os Estados-Membros, através dos respetivos gabinetes de recuperação, pretendendo alargar o âmbito de aplicação a outros tipos de crimes – como a criminalidade ambiental –, e estabelecer novas regras no que respeita à administração e preservação eficaz dos bens confiscados, impondo a adoção de novos poderes aos Estados-Membros para executarem ações imediatas ou autorizarem os respetivos gabinetes de recuperação de ativos a tomar essas ações, por forma a salvaguardar os bens até à decisão final sobre a perda e a respetiva alienação com base nessa decisão.
Neste âmbito, a Diretiva prevê, no seu artigo 15.º, a controversa perda não baseada numa condenação.
Esta figura, não é, contudo, uma novidade. Com efeito, desde a aprovação da Diretiva (UE) 2014/42, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, que a perda é admissível, pese embora apenas nas situações de doença ou fuga do suspeito ou arguido.[iii]
A nova Diretiva veio, assim, aumentar o leque de situações em que a perda sem prévia condenação é admitida, designadamente, quando o prazo de prescrição previsto no direito nacional do crime em causa seja inferior a 15 anos e tenha terminado após o início do processo-crime, ou no caso da morte do suspeito ou do arguido.
Mas vai mais longe, ao consagrar que, na ausência das circunstâncias acima referidas, possa ser determinada a perda de bens sem condenação prévia, quando seja previsível que i) do processo resulte uma condenação, pelo menos, relativamente aos crimes suscetíveis de gerar um benefício económico substancial; e ii) se o tribunal nacional estiver convencido de que os bens alvo da perda resultam ou estão relacionados com o crime em causa.
A Diretiva carece ainda de transposição para produzir os seus efeitos a nível nacional. Porém, atendendo às (parcas) concretizações com que foi apresentado o novo paradigma, este parece coincidir com os termos ali propostos, concretamente, ao anunciar o alargamento das situações em que pode ser dispensada a prévia condenação para que seja decretada a perda dos bens.
A nossa Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro
Em Portugal, o regime vigente prevê uma perda assente na presunção de que tudo o que integrar o património do arguido e que exceda os rendimentos por si declarados, tem proveniência ilícita, podendo, por isso, ser arrestado e, posteriormente, declarado perdido a favor do Estado. Neste regime, é o arguido quem tem de fazer prova, no processo, de que o seu património dissonante não foi obtido através ou em resultado da prática de um crime – é a chamada inversão do ónus da prova quanto à licitude da proveniência dos bens do arguido.
Este regime tem como finalidades mediatas combater o enriquecimento ilícito e a dissipação de bens. Isto é, visa impossibilitar que os suspeitos ou arguidos obstem ou evitem a perda do seu património, através da sua transferência para terceiros com conhecimento da causa.
Tal como se depreende facilmente, este regime contende com direitos fundamentais, entre os quais, o princípio, constitucionalmente consagrado, da presunção da inocência; o direito (com natureza constitucional implícita) à não autoincriminação; e o direito de propriedade privada.
O debate pouco pacífico desta matéria tem deixado sempre por responder a seguinte questão: se o arguido deve ser presumido inocente no decorrer de todo o processo e até que se faça prova plena e definitiva do contrário, ao transferirmos para ele o dever de provar que o seu património não tem origem num crime, que presunção de inocência lhe resta?
A presunção não será, ao invés, sobre a ilicitude do seu património, a qual corre a favor do Ministério Público, pese embora nem sempre em benefício da celeridade do processo ou, até, da justiça material?
Por isso, é legítimo questionar se, na tentativa de combater o Kraken da corrupção, as medidas previstas na Diretiva não resultarão na criação de um outro monstro, e com ele, comprometer, ainda mais, os direitos, liberdades e garantias das pessoas envolvidas em processos-crime.
Este novo regime impulsionado pela Diretiva é claro na intenção do reforço das medidas de prevenção e de combate à corrupção. Porém, a ausência de esclarecimentos sobre a forma como será operada a criação do novo paradigma deixa espaço para interrogações e para o alarme jurídico, correndo, inclusive, o risco de esbater a perigosa fronteira entre a procura pela maior eficácia dessas medidas e a violação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Se, por um lado, é evidente que a corrupção é o Kraken desta e das próximas décadas, ameaçando afundar as instituições e os direitos edificados pelo Estado de Direito Democrático. Por outro, impõe-se ponderar que o combate a este monstro não pode ser feito com a criação de outros, igualmente perigosos, destrutivos e, muitas vezes, ineficazes.
por Alexandra Mota Gomes e Luísa Albino, Área de Prática – Criminal, Contraordenacional e Compliance
[i] https://www.nationalgeographic.pt/historia/o-kraken-uma-lula-gigante-escondida-no-oceano_2855
[ii] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L_202401260&qid=1714727309234
[iii] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0042