No dia 1 de agosto de 2025, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu um acórdão de enorme relevância para o atual modelo de arbitragem desportiva: as decisões do Tribunal Arbitral do Desporto sediado em Lausanne, Suíça (“CAS/TAS”) devem ser passíveis de fiscalização jurisdicional efetiva por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, sempre que sejam impostas unilateralmente por federações desportivas, como é o caso da FIFA.
Enquadramento
O caso teve início em 2015, quando o clube belga Royal Football Club Seraing (“RFC Seraing”) celebrou acordos de financiamento com a empresa Doyen Sports, na qual cedeu parte dos direitos económicos de alguns dos seus jogadores, uma famosa prática proibida pela FIFA, conhecida como Third Party Ownership (“TPO”), prevista nos artigos 18.º-bis e 18.º-ter das “Regulations on the Status and Transfer of Players” (RSTP).
Como resultado, o clube foi sancionado com uma proibição de inscrever novos jogadores durante alguns períodos de transferência e, ainda, com uma sanção económica, consequências essas confirmadas pelo CAS e pelo Tribunal Federal suíço.
Perante esse cenário, o clube recorreu à justiça belga, alegando que não existiu controlo jurisdicional efetivo da compatibilidade dessas mesmas sanções com o direito da União Europeia. O processo chegou ao Tribunal de Cassação da Bélgica, que submeteu ao TJUE questões prejudiciais, no âmbito do processo C-600/23
A decisão do TJUE
O TJUE esclareceu que, quando a arbitragem é imposta unilateralmente por federações desportivas (como ocorreu no caso da FIFA), torna-se fundamental que as respetivas decisões arbitrais não fiquem isentas de uma fiscalização da conformidade com os princípios e disposições do direito da União, na medida em que tais decisões não podem viver à margem da ordem jurídica da UE.
Neste sentido, o TJUE ressaltou que as sentenças do CAS devem ser passíveis dessa fiscalização jurisdicional por parte dos tribunais nacionais, incluindo no que diz respeito a regras de concorrência e de livre circulação.
Com efeito, o TJUE destacou que, nos casos em que uma decisão arbitral tenha sido proferida no contexto de um litígio ligado ao exercício de uma atividade desportiva com natureza económica no território da União, e em que não exista uma via de recurso direta, dessa decisão, para um tribunal de um Estado-Membro, deve ser assegurado aos particulares o direito de obter, ainda que de forma incidental, uma fiscalização jurisdicional efetiva, por parte de um órgão jurisdicional nacional, quanto à conformidade dessa decisão arbitral com os princípios e normas integrantes da ordem pública da União Europeia.
Consequências
A decisão do TJUE representa uma limitação significativa à autoridade de caso julgado atribuída às decisões arbitrais no desporto, em particular quando tais arbitragens são impostas sem opção real das partes envolvidas.
Em todo o caso, esta jurisprudência reafirma a proteção dos direitos fundamentais garantidos pelo direito da União, nomeadamente o direito à tutela jurisdicional efetiva e o respeito pelos princípios organizadores da ordem pública da União, mesmo em contextos contratuais ditos “voluntários” apenas na forma.
Este acórdão alinha-se com uma tendência jurisprudencial anterior, nomeadamente, no caso Achmea e Komstroy e no acórdão International Skating Union v. Commission ou, mesmo, na própria jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Mutu e Pechstein, que igualmente reconheceram os riscos inerentes à arbitragem forçada no desporto internacional. Neste último, já existiam manifestações de preocupações quanto à imposição e carácter irreversível da arbitragem desportiva, sendo que o TJUE acentua agora, com maior profundidade, a necessidade de garantias efetivas de controlo jurisdicional sempre que estejam em causa princípios ou disposições de direito da União.
O que muda?
Este acórdão do TJUE abre caminho para que clubes, atletas e demais partes envolvidas em matérias contratuais altamente complexas possam recorrer a tribunais dos próprios Estados Membros, exigindo (i) a fiscalização jurisdicional da conformidade das decisões do CAS com o direito da UE; (ii) o uso de medidas cautelares, como injunções ou suspensão de decisões arbitrais, e (iii) a possibilidade de indemnizações pelos prejuízos causados, caso haja violação de normas e princípios da ordem jurídica da União.
O acórdão poderá desencadear uma onda de reivindicações semelhantes por parte de clubes ou atletas que se sintam prejudicados por arbitragens desportivas, especialmente quando se sintam impedidos de dar algum tipo de sequência em matéria de recurso às decisões proferidas.
Além disso, impõe-se agora, nomeadamente a entidades como a FIFA e a UEFA, a necessidade de rever os seus regulamentos internos, os quais, de forma habitual, estabelecem a arbitragem como única via de resolução de litígios, excluindo a possibilidade de recurso aos tribunais nacionais.
Este acórdão, proferido a 1 de agosto de 2025, marca um ponto de viragem no tratamento jurídico da arbitragem desportiva no sistema jurídico da União Europeia: reafirma que as decisões do CAS – incluindo as impostas por legislação – devem ser passíveis de fiscalização jurisdicional pelos tribunais dos Estados Membros, quando conflitam (em potência) com princípios e disposições de direito da UE. Esta mudança fortalece o “Estado de Direito” no desporto, garantindo que a eficiência da arbitragem não se sobreponha aos direitos dos clubes, atletas e demais stakeholders.
Finalmente, reforça o princípio de que a arbitragem desportiva, ainda que conveniente do ponto de vista prático, não pode sobrepor-se às garantias básicas do direito da UE, especialmente nos casos em que se trata de imposição unilateral.
por Ricardo Cardoso e Carlos Ferreira Vaz, Área de Prática – Desporto, Moda e Entretenimento